29/05/14
Vale a pena ler, mas ler sem paixão partidária.
Entendo que é um texto de eminente Professor de Sociologia (inclusive
da Sorbonne), e não texto terceirizado, assinado por Doutor Honoris
Por Fernando Henrique Cardoso - Sociólogo
Finalmente fez-se justiça no caso do mensalão. Escrevo sem júbilo: é
triste ver na cadeia gente que em outras épocas lutou com desprendimento. Estão presos ao lado de outros que se dedicaram a encher os bolsos ou a pagar suas campanhas à custa do dinheiro público.
Mais melancólico ainda é ver pessoas que outrora se jogavam por ideais
mesmo que controversos -- erguerem os punhos como se vivessem uma situação revolucionária, no mesmo instante em que juram fidelidade à Constituição. Onde está a Revolução?
Gesticulam como se fossem Lenines que receberam dinheiro sujo, mas
usaram-no para construir a "nova sociedade". Nada disso: apenas ajudaram a cimentar um bloco de forças que vive da mercantilização da política e do uso do Estado para perpetuar-se no poder. De pouco serve a encenação farsesca, a não ser para confortar quem a faz e enganar a seus seguidores mais crédulos.
Basta de tanto engodo. A condenação pelos crimes do mensalão se deu em
plena vigência do Estado de Direito, em um momento no qual o Executivo é exercido pelo Partido dos Trabalhadores, cujo governo indicou a maioria dos ministros do Supremo.
Não houve desrespeito às garantias legais dos réus e ao devido
processo legal. Então por que a encenação? O significado é claro: eleições à vista. É preciso mentir, enganar-se e repetir o mantra. Não por acaso a direção do PT amplifica a encenação, e Lula diz que a melhor resposta à condenação dos mensaleiros é reeleger Dilma
Rousseff...
Tem sido sempre assim, desde a apropriação das políticas de proteção
social até a ideia esdrúxula de que a estabilização da economia se deveu ao governo do PT. Esqueceram as palavras iradas que disseram contra o que hoje gabam e as múltiplas ações que moveram no Supremo para derrubar as medidas saneadoras. O que conta é a manutenção do poder.
Em toada semelhante, o mago do ilusionismo fez coro. Aliás, neste
caso, quem sabe, um lapso verbal expressou sinceridade: estamos juntos, disse Lula. Assumiu meio de raspão sua fatia de responsabilidade, ao menos em relação a companheiros a quem deve muito. E ao país, o que dizer?
Reitero, escrevo tudo isso com melancolia, não só porque não me apraz
ver gente na cadeia, embora reconheça a legalidade e a necessidade da decisão, mas principalmente porque tanto as ações que levaram a tão infeliz desfecho como a cortina de mentiras que alimenta a aura de heroicidade fazem parte de amplo processo de alienação que envolve a sociedade brasileira.
São muitos os responsáveis por ela, não só os petistas. Poucos têm
tido a compreensão do alcance destruidor dos procedimentos que permitem reproduzir o bloco de poder hegemônico; são menos numerosos ainda os que têm tido a coragem de gritar contra essas práticas.
É enorme o arco de alianças políticas no Congresso cujos membros se
beneficiam por pertencer à "base aliada" do governo. Calam-se diante do mensalão e demais transgressões, como se o "hegemonismo petista" que os mantém seja compatível com a democracia.
Que dizer então da parte da elite empresarial que se ceva dos
empréstimos públicos e emudece diante dos malfeitos do petismo e de seus acólitos? Ou da outrora combativa liderança sindical, hoje acomodada nas benesses do poder?
Nada há de novo no que escrevo. Muitos sabem que o rei está nu, e
poucos bradam. Dai a descrença sobre a elite política reinante na opinião pública mais esclarecida. Quando alguém dá o nome aos bois, como, no caso, o ministro Joaquim Barbosa, que estruturou o processo e desnudou a corrupção, teme-se que, ao deixar a presidênc ia do STF, a onda moralizante dê marcha a ré. É evidente, pois, a descrença nas instituições. A tal ponto que se crê mais nas pessoas, sem perceber
que por esse caminho voltaremos aos salvadores da pátria. São sinais
alarmantes.
Os seguidores do lulo-petismo, por serem crédulos, talvez sejam menos
responsáveis pela situação a que chegamos do que os cínicos, os medrosos, os oportunistas, as elites interesseiras que fingem não ver o que está à vista de todos. Que dizer então das práticas políticas?
Não dá mais!
Estamos a ver as manobras preparatórias para mais uma campanha
eleitoral sob o signo do embuste. A candidata oficial, pela posição que ocupa, tem cada ato multiplicado pelos meios de comunicação. Como o exercício do poder se confundiu, na prática, com a campanha eleitoral, entramos já em período de disputa. Disputa desigual, na qual só um lado fala, e as oposições, mesmo que berrem, não encontram eco. E sejamos francos: estamos berrando pouco.
É preciso dizer com coragem, simplicidade e de modo direto, como
fizeram alguns ministros do Supremo, que a democracia não se compagina com a corrupção nem com as distorções que levam ao favorecimento dos amigos. Não estamos diante de um quadro eleitoral normal.
A hegemonia de um partido que não consegue se deslindar de crenças
salvacionistas e autoritárias, o acovardamento de outros e a impotência das oposições estão permitindo a montagem de um sistema de poder que, se duradouro, acarretará riscos de regressão irreversível.
Escudado nos cofres públicos, o governo do PT abusa do crédito fácil
que agrada não só aos consumidores, mas, em volume muito maior, aos audaciosos que montam suas estratégias empresariais nas facilidades dadas aos amigos do rei. A infiltração dos órgãos de Estado pela militância ávida e por oportunistas que querem se beneficiar do Estado distorce as práticas republicanas.
Tudo isso é arquissabido. Falta dar um basta aos desmandos, processo
que, numa democracia, só tem um caminho: as urnas. É preciso desfazer na consciência popular, com sinceridade e clareza, o manto de ilusões com que o lulo-petismo vendeu seu peixe. Com a palavra, as oposições e quem mais tenha consciência dos perigos que corremos.
(ENDIT)