30 JAN 2011
O S B I L O N T R A S
Maria Lúcia Victor Barbosa
Na sua obra, “Os Bestializados”, o historiador mineiro José Murilo de Carvalho volta aos primórdios da República para apresentar uma visão história, política e social cuja essência, no meu entender, se repete nos dias atuais.
A essência, conforme penso, está no modo de ser bilontra ou tribofeiro, característica do brasileiro como um todo. Explicando melhor, na revista O Bilontra, citada por Carvalho e editada em 1886, por Artur Azevedo, esse tipo é o espertalhão, o velhaco, o gozador ou tribofeiro.
Em 1891, ainda conforme o autor citado, Artur Azevedo lança outra revista, O Tribofe, termo ligado à trapaça e que caracteriza a capital da República onde tribofeiros estavam por toda parte: “na política, na bolsa, no câmbio, na imprensa, no teatro, nos bondes, nos aluguéis e no amor”. “Como diria o próprio tribofe: ‘Ah, minha amiga, nesta boa terra os mandamentos da lei de Deus são como as posturas municipais, ninguém respeita”.
José Murilo mostra que no Brasil “normas legais e hierarquias sociais foram aos poucos se desmoralizando, constituindo-se em um mundo alternativo de relacionamentos e valores onde predominam o deboche, a irreverência, a malícia”.
Essa mentalidade com toque carnavalesco me parece perfeita para explicar o porquê da popularidade do ex-presidente Lula da Silva. O povo consagrou um rei bilontra com o qual se identificou, um monarca debochado, irreverente, malicioso, piadista, informal, populista, dotado de oratória tosca e tarimba adquirida em palanques de sindicatos, adepto do “deixa a vida me levar”.
Lula da Silva também é homem de rara sorte. Escapou da origem simples e ingressou no mundo de poder e riqueza sempre apoiado por compadres e companheiros. Recebeu, ao chegar à presidência o para-casa pronto do governo anterior, coisa que espertamente seu partido chamou de “herança maldita”, mas que foi copiada e tocada para frente sob as facilidades do céu de brigadeiro da situação externa, até 2009, quando adveio a crise internacional que aqui foi alcunhada de “marolinha”, bem ao estilo gozador do “salvador da pátria”.
A propaganda intensificou trapaças que alteraram a visão de realidade da infraestrutura, da Educação, da Saúde. Criativamente truques contábeis foram utilizados pelo Tesouro. A corrupção governamental foi tida como normal. Os exorbitantes privilégios do “rei e da família real”, que contrastaram com a oratória do “pobre operário” não chocaram os bilontras que nas pesquisas afirmaram: “se eu estivesse lá faria a mesma coisa”.
Quando de novo as eleições chegaram, bilontras hipnotizados pela arenga do líder dirigiram-se às urnas e, obedientes, elegeram Dilma Rousseff. Era a maneira de manter Lula lá.
E Lula continuou. Remontou o ministério à sua imagem e semelhança, conversa com sua comandada diariamente, conforme a imprensa. Estrategicamente, porém, o ex-presidente não se expõe, sendo que a presidente é mostrada com bastante parcimônia.
O ocultamento da sucessora pode se dar por dois motivos: primeiro, esconder aquela certa dificuldade de raciocinar com fluência que era evidente durante a campanha. Segundo, tentar evitar ao máximo a vinculação da verdadeira herança maldita à presidente. Naturalmente, os marqueteiros dirão que a blindagem se deve a uma estratégia premeditada para construir uma imagem da própria Rousseff. Não precisava. Ela não é Lula.
A herança maldita não inclui somente a vergonhosa manutenção em nosso território do terrorista Cesare Battisti, a compra de aviões franceses, o valor do salário mínimo, a insatisfação do PMDB com a distribuição de cargos, as críticas à política externa brasileira que apoia regimes de déspotas violadores de direitos humanos. A herança maldita, que emblematicamente começou com a “tragédia das pedras” na região serrana do Rio, inclui o único fator que os bilontras são capazes de perceber, pois, se estão cada vez mais cínicos, corrompidos, indiferentes à imoralidade pública reinante, logo começarão a se ressentir e a se inquietar quando perceberem a inflação descontrolada que corrói seu poder aquisitivo.
Para eleger sua sucessora o governo Lula não mediu consequências e no último ano bateu recorde de gastos. Despesas do Tesouro, INSS e Banco Central, que em 2003 representavam 15,14% do PIB, atingiram 19,14% oito anos depois. A escalada de gastos públicos continua e dificultará o trabalho do Banco Central para conter a inflação. Contudo, quando o relatório oficial do Fundo Monetário Internacional (FMI) denunciou a deterioração das contas públicas brasileiras, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, se limitou a ironizar de forma grosseira e arrogante dizendo: “Acho que o diretor-gerente (Dominique Strauss Kahn) saiu de férias e algum velho ortodoxo deve ter escrito esse relatório com essas bobagens sobre o Brasil”.
Ainda é cedo para julgar o governo Rousseff, mas pelo andar da carruagem, quando o ano começar depois do carnaval, os bilontras saberão se é bobagem ou não a escalada inflacionária.
Maria Lucia Victor Barbosa é socióloga.