Yankees, go home!
Recuse-se a assinar qualquer confissão de dívida com a Eletropaulo, maior distribuidora de energia da América Latina, controlada pela americana AES.
Eles são protagonistas de um calote de US$ de 1,3 bilhão aos cofres públicos, mas tentam arrumar lucros com métodos de Al Capone. A Eletropaulo coagiu milhares de consumidores a pagar supostas diferenças nas contas de luz de até 15 anos atrás. Era assinar uma confissão ou ter a luz cortada e o nome sujo no SPC. É “abuso”, “coação”, “absolutamente ilegal”, avisa o Ministério Público em ação para que Eletropaulo devolva o dinheiro recebido indevidamente de consumidores. Alerte os amigos e vizinhos. Eis a história de um golpe bilionário:
Esse é, definitivamente, um daqueles casos de deixar o cidadão brasileiro indignado, do início ao fim. Os americanos ficaram com a Eletropaulo numa grande mamata do governo Fernando Henrique. Em 1998 tomaram um empréstimo de US$ 2 bilhões do BNDES, sem garantias reais, enviaram US$ 900 milhões de supostos lucros para a matriz nos Estados Unidos e ainda por cima não pagaram o empréstimo. Devem US$ 1,3 bilhão. Num passe de mágica, ficaram com uma empresa que detém o monopólio de um serviço essencial, companhia estratégica, que fornece energia para quase metade do parque industrial brasileiro. Não foi uma privatização, mas uma proto-doação. Como naqueles negócios em que um pai empresta dinheiro a um filho para comprar o imóvel do próprio pai. Entregar a Eletropaulo a esses americanos (quase de graça) foi a grande herança maldita de FHC.
As cobranças indevidas de contas supostamente atrasadas de consumidores brasileiros começaram em 2002 – e prosseguem até hoje. Depois do 11 de setembro, a AES começou a passar suas próprias dificuldades no mercado dos EUA. Exigiram então que as filiais acelerassem a remessa de lucros. Queriam dinheiro, mais dinheiro, muito dinheiro. Foi nessa época que a filial no Brasil, a Eletropaulo, começou a apertar seus consumidores com métodos heterodoxos. Apareceram contas de luz, anteriores à privatização, em 1998, com diferenças de cobranças que iam de milhares de reais até de centavos.
De um consumidor na época identificado pela Folha de S. Paulo, a Eletropaulo disse que haveria uma diferença de R$ 0,01 numa conta de 1992. Aplicou multa e correção monetária e chamou o consumidor para quitar seu suposto “calote”, de R$ 26,89 em junho de 2002. E se não pagasse? Ora, a Eletropaulo ameaçou cortar o fornecimento de luz e denunciar o consumidor ao SPC. Ou seja, era ficar sem luz e com o nome sujo na praça, ou pagar. A Eletropaulo fez isso e continua fazendo com milhares de consumidores. Talvez sejam milhões (ela naturalmente esconde seus números). Nesse bolo, há vítimas de abuso, como o caso acima. E é óbvio que há consumidores que de fato não pagaram suas contas. Também há contas de centavos, como também contas pesadas de grandes indústrias.
DEVOLVAM O DINHEIRO
Agora há uma boa nova. Dias atrás, a 12 de agosto, o Ministério Público Federal em São Paulo decidiu acionar judicialmente a Eletropaulo para que devolva o dinheiro recebido indevidamente dos consumidores. Em ação pública civil, a procuradora da República Inês Virgínia Prado Soares afirma que a Eletropaulo, “em ação absolutamente ilegal”, e demonstrando desrespeito ao consumidor, vem exigindo confissões de dívidas já prescritas, caso houvesse, e, nos valores que ela impõe, coagindo as pessoas ao pagamento, aproveitando-se do fato de deter o “monopólio de um serviço essencial, básico, com a certeza da impunidade”, denuncia a procuradora.
A procuradora quer que a Eletropaulo calcule o que tomou e devolva valores cobrados indevidamente de consumidores.
Agindo abusivamente, a Eletropaulo tenta obrigar os consumidores a pagar débitos depois de cinco anos passados, contrariando determinações expressas da Aneel. Propõe acordo, com cláusulas draconianas, ameaçando suas vítimas de cobrança judicial e corte do fornecimento de energia caso não concordem.
“O termo de espontaneidade é absolutamente ilegal e demonstra total desrespeito da concessionária com o consumidor. A exigência de confissão de uma dívida que a Eletropaulo não teria meios judiciais para cobrar devido o decurso de prazo, demonstra o poder de coação da empresa”, afirma a procuradora Inês Virgínia. “Demonstra também a ineficiência da agência reguladora em exigir uma conduta dentro da legalidade e dos padrões éticos mínimos”.
A Aneel também é citada na ação da procuradora. Para ela, a agência não cumpriu com o seu papel de garantir os direitos fundamentais dos usuários de energia, uma vez que nunca estabeleceu regras claras sobre cobranças atrasadas por parte dos fornecedores, desprovendo-os “de qualquer instrumento para combater a conduta irregular praticada pela concessionária”.
A HISTÓRIA DE UM GRANDE GOLPE
Desde que a AES adquiriu a Eletropaulo, sua direção vem atuando em dois campos polêmicos, paralelos e complementares:
1) Maximizar os lucros e a remessa de divisas para a matriz nos Estados Unidos. A coação aos consumidores é uma das táticas. A AES já remeteu cerca de US 900 milhões, segundo os números públicos;
2) Arrastar ao máximo as pendências com o BNDES para não pagar US$ 1,3 bilhão do empréstimo. Desde o inicio da crise, em 2001, até agora nenhuma parcela relevante foi paga e os americanos continuam com o controle da companhia.
Impressiona como três sucessivos governos brasileiros, os de FHC-2, Lula-1 e Lula-2, vêm deixando os americanos consolidarem suas posições, tudo em nome da boa imagem do Brasil nos tais “mercados internacionais”.
Para que a AES pudesse comprar a Eletropaulo, em 1998, o BNDES de FHC emprestou o total de US$ 2 bilhões aos norte-americanos. Foram duas as operações. Na primeira, para comprar as ações ordinárias, com direito a voto, aquelas que de fato dão o controle e a gestão da companhia, a AES tomou o equivalente a US$ 900 milhões, já pagou US$ 700 milhões em amortizações mas ainda deve US$ 400 milhões. Na segunda, pediu US$ 1,1 bilhão para comprar as ações preferenciais, pagou US$ 500 milhões e ainda deve US$ 600 milhões. Com os juros da inadimplência, a dívida total hoje é de US$ 1,3 bilhão, equivalente a R$ 2,1 bilhões.
Após o 11 de setembro, a AES agravou uma crise de gestão nos Estados Unidos. Então os falcões da matriz, para salvar as próprias peles, ordenaram às filias em todo o mundo que remetessem o máximo em lucros aos EUA, com urgência. Assim foi feito. No caso da filial brasileira, a AES-Transgás, controladora da Eletropaulo, remeteu naquele período cerca de US$ 900 milhões. Ou seja, remeteu justamente o dinheiro que deveria pagar ao BNDES.
Os falcões da matriz também tomaram a decisão de que a operação no Brasil não seria mais prioritária. E, portanto, não remeteriam mais um centavo sequer para cá. Nem para pagar empréstimos, nem para fazer novos investimentos. E os executivos daqui, se quisessem ficar bem na foto diante dos chefões na matriz, que se virassem sozinhos. Que arrumassem alguma “solução de mercado”. Foi nessa época que a Eletropaulo começou a “apertar” os consumidores para que quitassem suas contas supostamente atrasadas, inclusive as prescritas, até as contas de R$ 0,01 de 2002.
Quando o governo Lula-1 começou a bomba já estava armada. Uma série de parcelas dos empréstimos venceu entre fins de 2003 e 2004 – e os americanos avisaram, de antemão, que não quitariam a dívida de US$ 1,3 bilhão. A multinacional declarou moratória técnica no início de 2004 e propôs ao governo que o contribuinte brasileiro assumisse seus prejuízos. Passaram meses arrastando ao máximo as negociações.
A melhor proposta apresentada foi a de repassar ao BNDES 49% dos ativos do grupo no País, o que não cobriria nem metade da dívida. Como é lei no mercado, ter 49,9% de empresa em litígio é o mesmo que não ter nada. Para mandar na empresa é preciso ter mais de 50%.
Naquela época o presidente do BNDES era o professor Carlos Lessa, combativo, polêmico e ideologicamente contrário a privatização de empresas estratégicas. Lessa queria retomar a Eletropaulo. Dilma Roussef, então ministra das Minas e Energia, também. Antônio Palocci, ministro da Fazenda, era contra.
Argumentava Palocci: “Qualquer pisada em falso, pode se transformar em notícia internacional de que o novo governo de esquerdista estaria estatizando empresas privadas norte-americanas”.
Dilma e Lessa chegaram a marcar uma mega-operação de guerra para a retomada do controle acionário da Eletropaulo e, ato contínuo, repassá-la ao controle e gestão da estatal Eletrobrás. Essa operação foi até batizada de “federalização”, um eufemismo para evitar o fantasma do termo “estatização”.
Pelo contrato com o BNDES, a AES tinha até o dia 28 de fevereiro de 2003 para quitar suas dívidas. E em caso de inadimplência, as ações da Eletropaulo passariam a ser do banco. As ações preferenciais (sem direito a voto) deveriam ser transferidas automaticamente a 3 de março de 2003. No caso das ações ordinárias, seria preciso que o BNDES entrasse com uma ação judicial pedindo a tutela antecipada da companhia –assunto que se resolve em poucos dias
Naquela época, como jornalista econômico, acompanhei bem de perto o impasse. Conversava muito com Dilma, com Lessa e com o então presidente da Eletrobrás Luís Pinguelli Rosa. Ainda guardo as anotações. Eis suas visões do problema:
Pinguelli: “Os americanos já avisaram que vão abandonar a Eletropaulo à própria sorte. Isso é sacanagem, escreva aí. Eles estão tratando o Brasil como um botequim, uma quitanda, que pode ser fechada quando o dono achar que deve ir embora”.
Lessa: “O maior problema não está na inadimplência da AES, mas na decisão já anunciada pelos americanos não colocar mais um centavo sequer no Brasil. O Brasil não pode ficar sob a ameaça de São Paulo apagar”.
Segundo Lessa, a operação teria sido concebida no governo FHC de forma lesiva ao BNDES. Isso porque o banco aceitou as próprias ações da Eletropaulo como garantia do negócio, sem exigir qualquer patrimônio na própria AES. Na prática, a multinacional conquistou o direito de devolver o negócio ao governo caso algo não desse certo e ir embora sem deixar nada no Brasil.
“Privatizaram o lucro e socializaram o prejuízo”, queixou-se Lessa.
Palocci na época era um ministro forte e estava em ascensão. Convenceu José Dirceu, o ministro-chefe do Gabinete Civil, que mandasse Lessa ficar quieto, que o BNDES não retomasse a Eletropaulo. Que negociasse ao máximo, até o limite, uma solução “de mercado” com a AES.
Os americanos então ofereceram quitar metade das dívidas entregando ao banco uma termoelétrica e uma distribuidora de energia no Rio Grande do Sul, a AES Sul. Também queriam que o BNDES financiasse outros US$ 500 milhões da dívida. Dilma me disse na ocasião que considerava a proposta norte-americana como uma “chantagem”.
Em paralelo, a AES acelerava a cobrança de supostas contas atrasadas de seus consumidores paulistas. Dívidas de até R$ 0,01, vale lembrar, sob ameaça de cortar o fornecimento de luz e sujar o nome do inadimplente no SPC.
O presidente da Eletropaulo, Steven Clancy, foi a Brasília tentar argumentar com a ministra Dilma Rousseff . Não convenceu. A ministra exigiu uma oferta melhor.
“Ora, se for para estatizar uma termoelétrica como parte do pagamento é mais lógico estatizar de vez a Eletropaulo para quitar toda a dívida”, reagiu Dilma, indignada.
“A AES fez uma proposta inaceitável, a empresa nada ofereceu de concreto ao BNDES a não ser que o banco fique prolongando indefinidamente a cobrança”, me explicou na ocasião o secretário-executivo do Ministério das Minas e Energia, Maurício Tolmasquim, hoje presidente da estatal EPE, Empresa de Pesquisa Energética. “O governo deseja ao máximo que a AES ofereça uma boa saída privada ao BNDES. Mas aceitar o que ofecereram, seria nos curvar à chantagem aceitar qualquer coisa só para evitar uma estatização. Isso seria um escândalo”, acrescentou.
A história ainda não terminou. Mas de lá para cá, só os americanos têm levado vantagem em todos os rounds. Primeiro prevaleceu a opinião de Palocci – e o governo Lula jamais cogitou novamente fazer valer o contrato e tomar de volta a Eletropaulo dos americanos inadimplentes. O Banco Central mandou o BNDES fazer a previsão de fundos para entubar o prejuízo de R$ 2,4 bilhão, que apareceu no balanço e acabou sendo uma das razões para a queda de Lessa da presidência do banco, substituído por Guido Mantega, que hoje está no lugar de Palocci.
ASSIM, TAMBÉM QUERO!
O BNDES acabou fechando um acordo com a AES, do jeitinho que os norte-americanos queriam. Qual o acordo? Ora, o banco aceitou socializar o prejuízo reestruturando a dívida da AES. Com a inadimplência, a dívida já havia subido para US$ 1,3 bilhão. Pelo acordo, a multinacional e o banco ficaram sócios em uma nova empresa, NovaCom, que desde então controla, além da Eletropaulo, as geradoras AES Tietê e AES Uruguaiana.
Desde então, o banco recebeu apenas US$ 60 milhões de amortização da dívida atrasada. As ações do BNDES na nova empresa representaram o pagamento de US$ 600 milhões dos US$ 1,3 bilhão devidos pela multinacional. Outros US$ 540 milhões foram convertidos em debêntures, que terão como garantia as ações da Eletropaulo na empresa. Os US$ 118 milhões restantes, referentes aos juros sobre as parcelas não pagas pela AES, foram congelados e, caso a dívida principal seja paga, serão perdoados.
A nova empresa é naturalmente controlada pela AES, com 50% mais uma ação. A companhia americana indicou o presidente do Conselho de Administração. As debêntures serão reajustadas pelo câmbio, mais uma taxa de juros de 9% ao ano, abaixo das taxas de mercado, portanto. Nos primeiros dois anos, a multinacional não recebeu nada da nova companhia. Desde 2006, contudo, vem recebendo 10% dos ganhos: o restante sendo usado para pagar a dívida com o BNDES.
As condições, como se vê, são ótimas. Assim eu também quero! Todos nós também queremos.
Há exatos dez anos controlando a Eletropaulo, dias atrás a AES sofreu o primeiro golpe, quando a procuradora da República Inês Virgínia Prado Soares entrou com uma ação civil pública para que a empresa devolva o dinheiro tomado indevidamente dos consumidores.
Por sua ficha corrida no Brasil, é provável que a AES comece uma série interminável de chicanas jurídicas para não pagar o que deve ao consumidor. De qualquer forma, ficam três alertas e as sugestões de solução:
1) Se algum novo consumidor for novamente ameaçado pela Eletropaulo com contas prescritas, procure imediatamente o Procon. E aproveite e envie sua queixa à procuradora Inês Virgínia para dar munição à ação contra os norte-americanos;
2) Se algum consumidor de fato está inadimplente com a Eletropaulo, proponha as mesmas condições de pagamento que a AES conseguiu arrancar do BNDES, socializando uma dívida privada com dinheiro público.Por conta de todos esses fatos só nos resta ressuscitar aquela palavra de ordem que por aqui saiu de moda quando FHC começou com as privatizações: Yankees, go home!------Artigo original publicado no site
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