Demóstenes Torres é procurador de Justiça e senador (DEM-GO)
Durante o regime de 1964, os militares ganharam a guerra da luta armada, mas perderam a batalha para a sabedoria convencional. Assim como na Guerra Civil Espanhola, a verdade ficou ao lado dos perdedores. Assentados no poder desde a transição democrática, eles tiveram um grande momento na Era FHC e no governo Lula chegaram ao topo da cadeia alimentar. Do alto das prerrogativas discricionárias que só um grande cargo comissionado pode conferir, decidiram partir para o exaurimento do revanchismo e revogar o espírito de reconciliação da Lei de Anistia de 1979. Amanhã, a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República lança um documento que, a pretexto de reconhecer a circunstância da morte dos desaparecidos políticos, tenta alterar o caráter amplo, geral e irrestrito que acabou por consagrar a anistia. Ao fazê-lo, pensam como os ex-integrantes do regime militar que trabalharam contra a abertura política.
De propósito, muita gente se esquece do imensurável valor histórico da anistia de 1979. O benefício - a princípio vedado a quem cometeu crime de terrorismo ou assemelhado - significou esquecimento e foi de um enorme avanço institucional, uma vez que abriu a porta do Estado brasileiro para o abrandamento da censura, permitiu o estabelecimento do multipartidarismo, precipitou o fim da Lei de Segurança Nacional e incrementou a redemocratização. Como ato político, promoveu um dos mais fantásticos encontros do Brasil com seus cidadãos exilados, banidos ou com os direitos cassados, além de ter sacramentado a liberdade. Além do irmão do Henfil, vieram Arraes, Brizola, Marcio Moreira Alves e tantos outros entre cinco mil brasileiros que não tinham o direito de viver por aqui.
De forma canhestra, o caráter de esquecimento, que foi benéfico à evolução democrática quase três décadas atrás, agora não interessa mais aos revanchistas. Argumentam que a anistia pode ser revista para punir os ex-integrantes do regime militar sob a alegação de que o ato foi outorgado por um regime espúrio e de exceção, quando, na verdade, foi um termo negociado entres os militares que comandavam a distensão e os oposicionistas alojados no antigo MDB, com a anuência do Comitê Nacional de Anistia. Aquela foi uma anistia possível que acabou por crescer e se tornar irrestrita. Os dois lados foram indistintamente anistiados. Os militares preferiram submergir até por entenderem que o tempo deles havia passado.
Os que enfrentaram a ditadura, ao contrário, ascenderam ao poder e, no governo FHC, puseram para funcionar pernicioso processo de vitimização para alimentar indústria indenizatória. Ao voltar a irrigar o ódio, a Secretaria Especial de Direitos Humanos está a patrocinar nova onda de ressarcimentos e ainda quebrar a segurança jurídica da Lei de Anistia em forma de caça às bruxas. Vejam que barafunda. Documento de uma Secretaria da Presidência da República, a ser apresentado ao País em solenidade com a presença do primeiro mandatário, vai pedir esclarecimentos às Forças Armadas sobre os mortos e desaparecidos. E quem é o comandante supremo do Exército, da Marinha e da Aeronáutica? Naturalmente que o próprio presidente Lula, que deveria repreender o subordinado por tamanha patuscada.
O pior de tudo que li a respeito do tal documento é a menção de que autoridades militares do período perderiam o benefício da anistia por estarem a incorrer em "crime continuado" em razão da ocultação dos cadáveres dos desaparecidos. Daí, poderiam ser levados às galés. Trata-se de uma burrice exegética especificamente destinada a promover demagogia revanchista e cujo valor doutrinário qualquer calouro de direito é capaz de contestar com a propriedade de bacharel. A revisão dos efeitos da Lei de Anistia tem cara de ciúme retroativo e atende aos interesses de casmurros estabelecidos que pretendem fazer da democracia instrumento eficaz de realização da vindita. A esquerda há 28 anos exigia anistia ampla, geral e irrestrita. Muito bem, temos a honra de ostentar que há quase três décadas não há mais presos políticos no Brasil. O PT não pensa assim e acha que pode rasgar a lei que abriu o caminho da liberdade. Deveriam estudar Direito Penal.
Fonte: http://oglobo.globo.com/pais/noblat/post.asp?cod_post=71320