ALMIORANTE
(Documento ultra-secreto. Triture-o antes de
ler.)
Homenagem aos colegas promovidos a almirante
Costuma-se dizer que a diferença entre um
capitão-de-mar-e-guerra e um almirante é que o capitão-de-mar-e-guerra pensa
que é Deus, e o almirante tem certeza. Isso até faz algum sentido, pois
Deus, que é Deus, é chamado apenas de Senhor, enquanto um almirante é chamado
de Vossa Excelência.
Nos tempos de Colégio e Escola Naval,
tínhamos dificuldade de acreditar que almirantes tivessem origem em seres
de carne e osso. Isso porque nossos comandantes nos acostumaram a ver os
almirantes como entidades espirituais, algo do tipo Oxossi, Ogum,
Zarathrusta, Virshna, qualquer coisa do gênero, que não sabíamos de onde
vinham, mas acreditávamos que existissem. Nós os víamos apenas em
ocasiões muito especiais, como um eclipse do sol ou a passagem do Cometa
de Halley. O que mais nos impressionava é que eles não chegavam de
Kombi, transporte dos oficiais comuns, mas sim de Opala com ar
condicionado, o que era um luxo para a época. É preciso esclarecer que
andar de Kombi é um estigma na carreira do oficial de Marinha, que se
divide em antes e depois da Kombi. Quase todo capitão-de-mar-e-guerra da
reserva sofre da “Síndrome da Kombi”. Em todos os hospitais navais há uma
carcaça de Kombi usada para tratamento psiquiátrico dos casos mais
sérios. Eu já estou quase curado, mas ainda dormirei em um banco de Kombi
por algum tempo, até a cura total. O que causa essa síndrome é saber que
ninguém em cargo importante anda de Kombi, particularmente os
mar-e-guerra não almirantáveis. Eu criei esse trauma porque mesmo quando
comandei não tive direito a um Opala e, para piorar, no último dia de
serviço ativo ainda fui para casa numa carona de Kombi. A compensação é
que meu pouco sucesso na carreira militar foi amplamente recompensado na
vida civil. Recentemente fui eleito, com votos de dois parentes, terceiro
suplente de subsíndico no prédio onde moro. A cerimônia de posse foi
realizada no elevador de serviço, onde serviram biscoito maizena e
refresco de groselha.
Lembro-me de que antigamente os
almirantes tinham nomes em código, utilizados nas mensagens operativas. O
Chefe do Estado-Maior da Armada, por exemplo, era, até por uma questão de
humildade, “O Sol”. Quando ele nos
honrava com sua presença em alguma cerimônia, recebíamos antecipadamente
uma mensagem informando a presença do “Sol em pessoa”.
Agora eu entendo porque os oficiais daquela época usavam tanto seus
óculos escuros.
Ficávamos boquiabertos com a
sabedoria que emanava dos discursos dos almirantes. Eram sempre um
complemento para nossas aulas de português. Isso deixava os mais modernos
em desespero, pois algumas vezes eram escalados para saudar autoridades e
tinham de fazê-lo, também, com palavras rebuscadas. Lembro-me de um tenente
que, muito nervoso, desejou ao almirante um Natal nefasto, e tentando elogiar a autoridade acabou
chamando-a de inadimplente.
Nas cerimônias presididas por almirantes, os víamos
no palanque como indivíduos imortais, onipresentes, onipotentes e
oniscientes. Eram seres tão milagrosos que sua visita melhorava o rancho,
fazia as paredes aparecerem pintadas e corrigia todas as deficiências.
Terminada a cerimônia, eles entravam em Opalas, que para nós tinham a
mesma aparência de uma nave espacial, pois desapareciam com a pompa de
uma ascensão ao céu, deixando a sub-raça perplexa.
Mas a tradição se mantém, em parte,
até hoje. Temos tanta certeza de que um almirante sabe de tudo que os
ofícios a eles endereçados começam dizendo: “como é do conhecimento de Vossa
Excelência…” Essa forma é empregada porque nenhum oficial
comum se atreveria a causar surpresa a um almirante, muito menos susto,
mencionando algo que ele não soubesse.
Há detalhes básicos que devem ser
observados no trato com um almirante. Nunca se deve questioná-lo sobre
algo que ele não saiba responder, pois isso poderia irritá-lo, o que
seria perigoso. Em lugar de perguntar, por exemplo, ”almirante, que tipo de navio é aquele?”devemos
perguntar, mostrando completa ignorância: “almirante, o que é aquilo
boiando?” Então, do alto de sua sapiência, ele dirá: “é um navio, sua besta”. Outro cuidado
importante é que só se pode dizer não a um
almirante quando seja para agradá-lo. Por exemplo, se ele pergunta ao
assistente, “você acha que eu estou gordo?” O
assistente responde, “não, senhor”! Nunca devemos nos esquecer de um
velho ditado militar que diz:“quando o subordinado é idiota,
é idiota; quando o chefe é idiota, é chefe”.
Netinho de almirante é, para os
subordinados, a criança mais linda e mais inteligente do mundo. Lembro-me
que quando eu era assistente um dos netinhos do meu chefe adorava riscar
meus uniformes brancos com caneta esferográfica. Depois ainda ficava com
minhas canetas, porque nunca tive coragem de pedi-las de volta. Que gracinha
de criança! Cheguei a pensar que Herodes teve razão ao mandar matar
aquelas duas mil crianças, como nos conta a Bíblia. Assim que o almirante
passou para a reserva, fui visitá-lo só pelo prazer de dar um beliscão no
pestinha e resgatar minhas canetas.
A diferença entre o tratamento
oferecido a uma esposa de capitão-de-mar-e-guerra e uma de almirante é
notável. No aniversário de esposa de almirante chegam tantas flores que a
casa fica parecendo um jardim botânico. No aniversário de esposa de capitão-de-mar-e-guerra,
nem aquelas flores de plástico, de camelô, são enviadas. Bombom de esposa
de almirante é aquele com recheio abundante, que derrama licor francês a
ponto de melar os dedos; para esposa de capitão-de-mar-e-guerra, bombom,
se chegar, é uma caixa da Garoto, comprada na promoção, geralmente com o
prazo de validade vencido.
Almirante tem telefone direto no
gabinete e fala até com o Nepal, enquanto capitão-de-mar-e-guerra tem
telefone de ramal, com interurbano bloqueado. No rancho, há uma diferença
fundamental: almirante come bacalhau e capitão-de-mar-e-guerra come
badejo passado a ferro.
Assim, sabendo que almirantes são
seres dotados de características pouco peculiares aos mortais comuns,
fica difícil imaginar que algum dia tenham usado aqueles grotescos
uniformes de aluno do Colégio e da Escola Naval, particularmente o
mescla, de brim azul, tão macio que parecia lona de cobrir caminhão, e que
era fornecido em três tamanhos: o grande, o enorme e o
gigantesco; é difícil acreditar que almirantes tenham enfrentado
fila de rancho para comer “silveirinha”, tomar “jacuba”, e receber de
sobremesa uma colher de doce de leite ou aqueles famigerados figos em
calda (chamados na intimidade de “testículos do Hulk”); que tenham
limpado o cinto com Kaol e polido os sapatos com graxa Duas Âncoras; que
tenham acordado de madrugada, depois de uma noite sonhando com o festival
de provas, para mergulhar naquela piscina de água congelada, quase
siberiana, da Escola Naval. E como aprenderam a nadar, se o professor da
época chamava-se Maldonado? Como acreditar que um almirante já fez rol de
lavanderia e já calçou sapatos “Rocha Forte”, cuja sola, ao contrário do
que alegava o nome, era de papelão. Como imaginar que um almirante já
viajou naquele ônibus pré-histórico, conhecido por “geléia”, que comeu
ervilhas “Olé” e goiabada “Pelicano” e que usou papel higiênico “Cinelândia”?
(aquele cor de rosa, tão áspero que nos deixava com as nádegas carecas, e
cuja embalagem de papelão era mais macia que o próprio produto). Mas tudo
isso ficou para trás, e o grande escritor Machado de Assis nos lembra com
muita propriedade que “não existe nada mais antigo do que o passado
recente”.
Já houve almirantes que realmente se
imbuíram do fato de serem entidades; nunca se referiam a si mesmos na
primeira pessoa; diziam “o almirante gostou… o
almirante está satisfeito…”, talvez porque intitular-se apenas
EU fosse coisa de pessoas comuns. Um deles foi se confessar na igreja e o
sacerdote não conseguia entender porque é que em lugar de contar os
próprios pecados ele contava os de um almirante. O padre chegou a
perguntar-lhe, “mas isso é confissão ou é denúncia”?
Houve um almirante que mandou rezar
uma missa em ação de graças pelo restabelecimento da perna, que havia
fraturado em um acidente. Como segundo-tenente, fui escalado para
comparecer ao evento, pois cada unidade subordinada ao acidentado foi
obrigada a enviar um ônibus cheio de “fiéis voluntários”. O capelão,
notório puxa-saco, teve a coragem de dizer no sermão: “que beleza esta manifestação espontânea de religiosidade!” Pior
foi a fila de cumprimentos, na qual fui obrigado a entrar sem saber o que
deveria dizer. Depois de ensaiar, enquanto esperava minha vez, pensei em
cumprimentar a autoridade dizendo: “que perna forte, almirante. Já
nasceu até cabelinho”; depois achei que pareceria muita
intimidade com perna tão ilustre. Limitei-me a inclinar a cabeça com um
olhar respeitoso e admirado para o membro homenageado.
Eu falei que o capelão era puxa-saco,
mas a verdade é que almirantes atraem puxa-sacos. O prato preferido do
almirante é sempre a especialidade da esposa de um integrante de seu
gabinete. O mais exagerado bajulador que conheci foi um oficial que, num
momento de descontração, disse a um almirante: “chefe, nós temos o mesmo
tipo sanguíneo; se o senhor precisar… terei o maior prazer”.
Houve também o episódio do enterro de
uma autoridade naval. O puxa-saco soluçava à beira da cova de forma tão
exagerada que a dentadura, feita na Marinha, de tamanho padrão, saltou da
boca e caiu dentro do caixão. O bajulador aproveitou a deixa e disse:“leve, almirante, meu último sorriso”!
Um almirante é realmente um pólo de
atração. Em qualquer coquetel de Marinha, quando se forma uma rodinha de
oficiais, no centro estará sempre um almirante ou uma bandeja com
camarões.
A transformação de mar-e-guerra em
almirante é algo comparável à mutação da lagarta em lepidóptero. (O uso
da palavra lepidóptero em lugar de
borboleta deve-se ao fato de a primeira ser mais solene e mais máscula,
além de evitar conotações pejorativas. Na verdade, essa providência nem
se faz necessária, pois estamos certos de que não há e nunca houve na
História um almirante gay. Sabemos que todo almirante é tão macho que seu
lado feminino, se houvesse, seria lésbico).
Falando em transformação, vejamos o
que ocorre nesse processo. A primeira alvorada de um almirante é o
nascimento de um mundo encantado. A natureza surge em festa, com
passarinhos amestrados pelos mais modernos cantando nas janelas de sua
residência. O gerente do banco passa a tratá-lo como cliente VIP e
aumenta logo seu cheque especial. O mar-e-guerra de ontem, que sabia até
se vestir sozinho, vê surgir milagrosamente um séqüito (que logo se
tornará indispensável) para auxiliá-lo: assistente, taifeiro, motorista,
ordenança e despenseiro, todos solícitos e ávidos por atendê-lo. Nesse
contexto, surgem a água de bolinha, o cafezinho em xícara de porcelana
com a “ancrinha” (nada daqueles famigerados copinhos de plástico que
mar-e-guerra usa), o spray de “bom ar”, com cheirinho de quarto de
solteirona, o tapete persa sob a mesa, em lugar do velho carpete manchado
e de cor indefinível; o banheiro privativo, com tábua de privada modelo
luxo, papel higiênico macio, perfumado e aveludado, sala de trabalho com
vista para algum lugar além do corredor, carro amplo e confortável com
gasolina por conta do contribuinte, e o apartamento funcional grande, sem
infiltrações, com todos os eletrodomésticos funcionando, e que passa a
ter o pomposo nome de “residência oficial”.
Dentre as facilidades inerentes ao
novo posto, as consultas médicas e odontológicas são um capítulo a parte.
Adeus à fila da vala comum. Em lugar de pegar senha de madrugada, as
consultas passam a ser assim: o almirante manda o assistente telefonar, e
o médico, olhando a agenda cheia até o fim do ano, pergunta: “a que horas o chefe pode vir?” Nessa altura, a consulta
do mar-e-guerra da reserva, marcada havia seis meses, fica adiada para o
próximo milênio. Se fosse oftalmologia, ele já iria para a consulta levando
a bengala branca. Para almirante, acabou aquele atendimento em que a
lipoaspiração é realizada com “Vaporetto”, as hemorróidas são extraídas
com alicate, o joanete é removido com serrote e a prótese peniana é feita
com duas canetas “Bic”. Chega daquela dentadura tamanho único, que dói
fora da boca, e cujos dentes são tão grandes que mar-e-guerra só fala
assobiando e quando ri parece um esquilo. Saúde é coisa séria, pois não
há dúvida de que um almirante gripado causa muito mais preocupação do que
um mar-e-guerra moribundo.
As viagens são outro destaque. Nada
de depender de “cochas” na FAB, cuja sigla significaFome A Bordo, pois não oferecem nem um cafezinho.
Chega de viagens pelo CAN, que quer dizer Compareça Amanhã
Novamente, pois os vôos nunca saem no dia marcado. Quando
o mar-e-guerra pega um vôo desses, se arrisca a ter como companheiro de assento
um índio xavante, pintado de urucum, borrando seu uniforme branco e
contaminando-o com aquele cheirinho de sucuri do Alto-Xingu. Almirante só vai
de primeira classe, com espera em sala VIP, o assistente carregando o
“prá-terno”. Foi-se o tempo em que os pés chegavam ao destino tão inchados que
o mar-e-guerra saía andando como o Mickey na parada da Disney.
A chegada às solenidades passa a ser
feita de forma individual, com destaque, toque de apito, banda e oficiais
formados. Nada de chegar como mar-e-guerra, despercebido, entrando pelos
fundos do quartel, em grupo, de carona em uma van, quiçá em uma Kombi, ou
pior, em ônibus de representação. Ficou apenas na lembrança aquela fase
de chegar dirigindo o próprio carro e estacionar ao sol, tã~ao lo longe
que o ideal seria tomar um táxi para chegar até o palanque. Já que falei
nele, acabou-se aquele empurra-empurra do palanque “geral”, compartilhado
com fornecedores de Marinha e o pessoal da reserva. Terminou o contraste
dos vistosos uniformes com aqueles ternos tipo “três vezes sem juros” e
sapatos “Vulcabrás”, típicos do pessoal da “vala comum”. Agora é um palanque
classe “A”, sob um toldo decorado, no lado da sombra, com serviço de bufê
e água gelada em copo de cristal. Durante o coquetel, todas as bandejas
cheias passam ao lado dos almirantes, particularmente as de camarão.
Enquanto isso, os mar-e-guerra se aglomeram na porta da cozinha,
disputando a tapa um refrigerante genérico, quente, e um canapé de
sardinha. Mar-e-guerra só vê camarão em filme do Jacques Cousteau, e se
levar algum para casa as crianças dão chineladas achando que é uma barata.
A transformação ocorre também no
aspecto intelectual. O que mar-e-guerra fala, ninguém se lembra; o que
almirante fala, vira citação. Mar-e-guerra só pode fazer um comentário
quando tem certeza, mas almirante pode dizer apenas “eu acho” e o que ele disser passa a ter a
força de um preceito bíblico. Mar-e-guerra quando não sabe é
incompetente; almirante quando desconhece, certamente foi mal assessorado.
Um almirante, mesmo sem perceber,
dita os hábitos e costumes em sua área de influência. Se ele diz que
gosta de judô, no dia seguinte metade do gabinete já estará de quimono;
se ele joga futebol, haverá sempre um puxa-saco voluntário para ser
goleiro do time adversário; se ele é vegetariano, até gaúcho pára de
comer carne; se ele é religioso, e não declara a preferência, é de bom
alvitre que os subalternos cerquem por todos os lados: parte do gabinete
passa a andar com a Bíblia debaixo do braço, outros a ouvir o CD do Padre
Marcelo, e o assistente vira pai-de-santo, com charuto, galinha preta e
traje de babalaô.
Na transformação em almirante, até a
expressão facial muda. Mar-e-guerra tem aquela “cara de faina”, está sempre ofegante, com as
feições típicas de quem está à beira de um infarto. Almirante tem o olhar
sereno dos iluminados, aquele comportamento “Zen” que permite que
mantenha a calma mesmo quando todos a sua volta já querem atear fogo às
próprias vestes. Por isso, pode-se afirmar que a escolha de um almirante
se assemelha a de um Dalai Lama. A única diferença é que a Marinha em
lugar de selecioná-los no berço, por indicação das divindades, deixa para
fazê-lo mais tarde, entre os mar-e-guerra, por um processo tão cabalístico
e imprevisível que somente almirantes sabem fazer a escolha.
Finalizando, pode-se afirmar que o
sonho de todo mar-e-guerra da reserva é ter um amigo almirante, pois,
como se diz há anos, “mais vale um amigo no
gabinete que dez anos de capacete”.
Brasília, 08 de junho de 2001
Nero G. Pireli (durante seu tratamento na Kombi)