LEI DA ANISTIA DEVE SER
REANALISADA PELO STF, DIZ ESPECIALISTA.
Nacional
29.12.2013 - 13:06:09
O pesquisador Emílio
Meyer, da Universidade Federal de Minas Gerais, se debruçou sobre os votos de
2010 do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre a Lei da Anistia e achou
contradições entre os argumentos usados e as normas do direito internacional.
Sua tese de doutorado
sobre o assunto foi premiada pela Capes, fundação que avalia a pós-graduação.
Para Meyer, o STF
deveria rever sua posição sobre a Lei da Anistia de 1979, norma que livrou de
julgamento os que praticaram crimes políticos no regime militar (1964-1985).
Em 2010, o
entendimento da corte foi de que a lei não estava em desacordo com a
Constituição, diferentemente do que dizia a OAB (Ordem dos Advogados do
Brasil).
Em novembro daquele
ano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) –instituição judicial
autônoma cuja convenção é assinada pelo Brasil– condenou o Estado brasileiro
por omissão nos casos de desaparecimentos forçados na Guerrilha do Araguaia
(1972-74), quando cerca de 70 militantes foram mortos, e determinou que o país
deve penalizar criminalmente as violações ocorridas durante a ditadura.
Folha - O sr.
contesta o argumento de ministros do STF de que a Lei da Anistia precisa ser
mantida pois se trata de um acordo político que possibilitou a
redemocratização. Por que essa tese não serve?
Emílio Meyer - A
anistia foi um momento importantíssimo para pavimentar o caminho da democracia.
Mas não se pode entender que houve um acordo político. Não tínhamos uma
oposição efetiva que se contrapusesse ao regime. Era o que chamamos de oposição
consentida – mas que ainda assim se esforçou para que a anistia não fosse
também uma auto anistia [para os militares]. Como isso não foi possível, a
única saída foi estabelecer uma anistia que pudesse funcionar de forma
recíproca. Aquela anistia não resultou, portanto, de um acordo.
Caso a lei seja
revista, os militantes de esquerda também poderiam ser punidos?
Entendo que não.
Abusos ou crimes praticados durante a ditadura já foram responsabilizados ao
Estado. Diversos processos que tramitaram na Justiça Militar levaram a essas
responsabilizações.
O Código Penal prevê
que a maior parte dos crimes prescreve em até 20 anos.
Há crimes naquele
período, como desaparecimento forçado, que são considerados permanentes. Não é
um entendimento só da CIDH, mas também do STF [em 2009 e 2011 o STF autorizou a
extradição à Argentina de pessoas que promoveram sequestros há mais de 20
anos]. Em relação aos demais crimes, apesar de serem denominados "graves
violações aos direitos humanos", é mais adequado dizer que são crimes
contra a humanidade: o Estado autoritário brasileiro autorizou a prática dessas
violações para um grande número de pessoas de um setor específico da população,
por questões políticas. Em função da normativa internacional da qual o Brasil
faz parte, é preciso reconhecer que tais crimes são imprescritíveis.
E como tratar da
tortura? A prática só foi incluída na legislação após o fim do regime.
De fato, só passou a
existir juridicamente a partir de 1995. Mas os atos que foram praticados, que
chamaríamos hoje de tortura, eram outros crimes no contexto da ditadura – maus-tratos,
estupro, lesão corporal – e, portanto, mereceriam reprimenda institucional.
Também seriam passíveis de classificação como crimes contra a humanidade.
O Ministério Público
Federal tem ações contra responsáveis por sequestros durante a ditadura nos
casos em que a vítima continua desaparecida, sob a alegação de que seriam casos
em que o crime continua em curso. Que tal?
Esse caminho é
bastante importante. O órgão, logo após a decisão da CIDH, procurou um caminho
para cumpri-la. Como ela determinou que haja responsabilização pelos crimes de
desaparecimento forçado, diminuiu-se a controvérsia sobre a forma de
condenação. Há sete ações penais públicas em curso.
Como a lei da Anistia
poderia ser avaliada novamente pelo STF nos dias atuais?
O caminho mais
imediato seria pelo julgamento dos embargos de declaração [recurso para
esclarecer pontos obscuros da decisão]. Apesar de o recurso ter limitações para
rever o julgamento, há situações em que o STF consegue dar uma amplitude maior.
Além disso, temos um fato que veio posteriormente, que foi a decisão da CIDH, o
que poderia alterar o veredicto. Outro caminho seria os processos em relação a desaparecimentos
forçados chegarem ao STF.
A nova composição
ajuda?
É possível. Alguns
dos atuais ministros não chegaram a externar uma posição clara, com exceção do
Joaquim Barbosa, que se manifestou claramente a favor de novo julgamento. Mas
eu considero que o perfil dos atuais ministros é mais preocupado com o
asseguramento dos direitos humanos. Há um clima mais adequado para nova
interpretação.
Como avalia a
aplicação da justiça de transição no Brasil?
A justiça de
transição tem quatro pilares: direito à verdade, à reparação, a
responsabilização e reforma institucional. Sobre o direito à verdade, o mais
significativo é a criação da Comissão da Verdade.
O direito à reparação
é o pilar com a maior consolidação. Foi regulamentado em 2001 com a Comissão de
Anistia. Tem produzido um número grande de julgamentos, com reparações
econômicas e também simbólicas -como atos públicos e alteração de nomes de
ruas.
Responsabilização
abrange, além da questão penal, aspectos administrativos e civis. O Ministério
Público tem ajuizado ações contra pessoas que teriam sido responsáveis por
violações. Concluiu que, se o Brasil paga indenizações, pode então ir a esses
agentes e determinar que devolvam o dinheiro ou percam cargos e direito à
aposentadoria.
Quando à questão
penal, o mais próximo que temos são ações relacionadas aos desaparecimentos
forçados.
E a reforma
institucional?
É necessário dar
passos mais significativos. O Brasil ainda conta com agentes que supostamente
violaram direitos humanos na administração pública. Também na formação das
Forças Armadas, não há grande preocupação em dar uma formação em direitos
humanos.
Como avalia o
trabalho da Comissão Nacional da Verdade?
Extremamente salutar.
No início, os membros estavam tateando no escuro. Foi preciso definir alguns
pressupostos. Parece que agora há uma organização maior. Posteriormente, novas
investigações devem poder fazer parte da reconstrução da narrativa da história
brasileira.
Há controvérsia sobre
a ideia de que a Constituição deva se submeter a tratados internacionais. Por
que a decisão da CIDH deveria prevalecer?
Não vejo contradição.
Por termos consentido, a partir de 1988, com a jurisdição da CIDH, temos que
fazer cumprir essas decisões.
O STF já admitiu a
importância do cumprimento desses tratados. Ele estabeleceu que é impossível a
prisão do depositário infiel baseado em um tratado internacional. Além disso, a
Constituição pede que se preste atenção às normas internacionais de direitos
humanos.
Folha
de S. Paulo