O depoimento do chanceler Cleso Amorim
A política externa do governo Lula está baseada em dois grandes equívocos. O primeiro foi considerar que o Brasil e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva exerceriam a liderança da América do Sul, nos campos político e econômico, com o agradecido beneplácito dos países da região - quando não havia condições, conjunturais ou históricas, para a explicitação da hegemonia brasileira.
O segundo erro foi dividir o planejamento e a execução da política externa entre o chanceler - que ficou com as negociações comerciais e o "resto do mundo" -, o assessor internacional da Presidência, Marco Aurélio Garcia - incumbido da América Latina e do relacionamento com os "partidos irmãos" -, e o secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães - que se encarregou de enquadrar a diplomacia nos cânones da doutrina terceiro-mundista.
Todos os tropeços e fracassos da política externa, acumulados nesses quase três anos e meio, derivam desses dois pecados capitais. A agressão aos interesses brasileiros na Bolívia - representados pela Petrobrás, mas não apenas por ela - foi apenas mais um, numa longa lista de fiascos. O fato é que, de concessão em concessão - para sustentar objetivos com escassas possibilidades de realização, como o lugar permanente no Conselho de Segurança, a integração da América do Sul no momento menos propício,e o abandono da Alca e de outros acordos de comércio -, a diplomacia brasileira perdeu a fibra, Hugo Chávez arvorou-se em líder regional e Evo Morales se sentiu à vontade para agredir o Brasil com o fato consumado da expropriação das instalações da Petrobrás.
Desde que a crise com a Bolívia eclodiu, no dia 1º de maio, não faltaram críticas à passividade do Itamaraty diante do episódio - em boa parte inspirado e incentivado por Hugo Chávez. Em seu depoimento à Comissão de Relações Exteriores do Senado, anteontem, o chanceler Celso Amorim chega perto de reconhecer o acerto daquelas críticas. Hábil diplomata, porém, referiu-se a uma crítica que ninguém fez ao Itamaraty para justificar o injustificável. "A política brasileira nunca será a do porrete, e sim a da boa vizinhança", afirmou, como se algum dos críticos dessa política tivesse sugerido um revide violento à violência boliviana.
Na mesma linha, disse que "se entrássemos em uma escalada de retaliações, estaríamos despertando ações irracionais". Daí se poderia depreender que o governo brasileiro nada poderia fazer diante da quebra de contrato e da ameaça ao patrimônio nacional - que a Constituição determina que seja defendido pelas autoridades. Mas essa interpretação se chocaria com a grave ameaça que o chanceler fez mais adiante. Agora exibindo o porrete, advertiu que, no caso de o governo de La Paz prejudicar de alguma forma os agricultores brasileiros que se instalaram na Bolívia, o governo brasileiro tratará, "com reciprocidade" os 70 mil imigrantes clandestinos bolivianos que residem no Brasil.
Mas o mais importante foi o que o chanceler revelou sobre os acontecimentos de bastidores. Segundo ele, o presidente Lula teve uma conversa franca com Hugo Chávez, manifestando-lhe seu descontentamento com as atitudes do coronel, que, além de açular Evo Morales, já explorou o descontentamento do Paraguai e do Uruguai com o Mercosul.
Ora, um puxão de orelhas, dado numa conversa privada, só teria sentido há pelo menos um ano atrás, quando o comportamento de Chávez se tornou um evidente fator de perturbação do equilíbrio regional. Depois da eclosão da crise com a Bolívia, e diante das evidências da interferência de Chávez, caberia ao Itamaraty aconselhar o presidente Lula a manifestar o seu desagrado publicamente - como fez naqueles dias o presidente Alexandro Toledo, quando o coronel venezuelano interferiu no processo eleitoral peruano. Mas, em vez disso, Lula aceitou passivamente na reunião de Puerto Iguazú, com os presidentes da Argentina e da Bolívia, a presença de Chávez, que não era parte nos assuntos a serem discutidos. Se é verdade, como afirma o chanceler Celso Amorim, que "a liderança se exerce pela atitude", naquela ocasião o presidente Lula mostrou que quem lidera é o coronel Hugo Chávez.
O depoimento do ministro Celso Amorim no Senado é uma confissão tácita do fracasso da política externa brasileira. Conduz a uma única conclusão: essa política não pode continuar.
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