Quarta-Feira, 07 de Maio de 2008 | Versão Impressa
Luiz Eduardo Rocha Paiva
Hierarquia e disciplina são fundamentos das Forças Armadas em qualquer país. Sem esses princípios elas se transformam em instrumentos de opressão da sociedade, desintegram-se em segmentos controlados por caudilhos ou grupos de interesses diversos, lutando entre si pela tomada do poder. Perdem o caráter de instituições nacionais e sua razão de ser como ''braço armado'' para a defesa da nação.
As nossas Forças Armadas são instituições permanentes e se subordinam ao Estado, também perene, que difere de governo, que é temporário. A Constituição federal atribui-lhes a defesa da Pátria e a garantia dos Poderes constitucionais, da lei e da ordem. Situações extremas, que afetem a defesa da Pátria, a soberania e a integridade nacionais exigem posições firmes e destemidas de qualquer brasileiro, particularmente de chefes militares, cuja profissão lhes permite conhecer e avaliar cenários de evidentes ameaças. Nesses momentos pode ocorrer o dilema de ter de optar entre disciplina e lealdade, decisão difícil para um militar, como bem sabem os profissionais da carreira das armas.
O presidente da República - na condição de chefe de Estado - é o comandante supremo das Forças Armadas no Brasil. No regime presidencialista, o chefe de Estado é também chefe de governo, que tem obrigação moral e funcional de colocar aspirações e interesses nacionais acima de programas de governo e de partido, bem como de ambições eleitorais, principalmente quando uma decisão afete a defesa, a soberania e a integridade nacionais.
No Brasil, o Ministério das Relações Exteriores (MRE) e o da Defesa (MD) deveriam ter o mesmo peso político ao assessorarem o chefe de Estado em temas relacionados com defesa e segurança nacional, mas isso não ocorre desde o início da década de 1990. Há um desequilíbrio perigoso, com a balança pendendo para o MRE, o que evidencia falta de preparo e visão estratégica da liderança nacional, incapaz de perceber vulnerabilidades daí decorrentes. Como disse Henry Kissinger, ''diplomacia sem o respaldo de um forte poder militar não passa de mero exercício de retórica''.
A criação do MD, necessária para a integração das Forças Armadas, não teve tal propósito, mas sim o de afastar o militar do núcleo decisório do governo. Os ministros da Defesa são escolhidos por critérios políticos, não conhecem a cultura organizacional militar e não são estudiosos dos assuntos de defesa. Até hoje não existe o secretário-executivo do MD, que deveria ser um militar (pelos motivos supramencionados), o que não se concretiza por diversos motivos, inclusive por revanchismo. Como conseqüências desse quadro, os ministros não defendem com ênfase as posições propostas por seus assessores militares ou não têm argumentação para fazer valer suas idéias.
Aí se insere a questão da Amazônia. Desde 1991, quando foi criada a Terra Indígena (TI) Ianomâmi, as Forças Armadas vêm alertando os sucessivos governos sobre o perigo de conceder imensas TIs em faixas de fronteiras; de se deixarem substituir, junto aos indígenas, por ONGs estrangeiras apoiadas por governos alienígenas e defendendo a autodeterminação daquelas terras; de retardar a ocupação e integração da Amazônia; e de relegar a segundo plano o desenvolvimento da capacidade de dissuasão militar. Os governos não deram a menor importância aos alertas feitos através da cadeia de comando, sempre de maneira discreta.
Hoje chegamos a um momento de decisão. A ONU aprovou a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas em setembro de 2007, que prevê, simplesmente, a autodeterminação para as TIs, além de outros direitos que as tornam enclaves dentro do território nacional. Considerando as dezenas de TIs nas faixas de fronteiras e no interior, o que vai ser uma ''terra dividida em ilhas'' é o próprio País. A Declaração recebeu, lamentavelmente, o voto favorável do Brasil. Desnecessário dizer que EUA, Austrália e Canadá votaram contra.
O governo, inexplicavelmente, adotou uma posição que cria condições objetivas para a perda de soberania e integridade territorial. Qual o motivo? Incompetência para gerir o futuro do País num mundo onde se vive em permanente disputa de interesses? Barganha por algum interesse imediato de governo?
Existem três eventos que, coincidência ou não, mostram sucessivos governos criando TIs ou unidades de conservação em faixas de fronteiras quando tinham algum interesse em negociação internacional. Em 1991, sob ameaça de boicote da conferência ecológica Rio-92, foi criada a TI Ianomâmi. Em 2002, quando houve a Conferência Rio+10 na África do Sul, foi criado o Parque Nacional do Tumucumaque, onde existe uma TI. Em 2005, quando o Brasil pleiteava um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, foi definida a TI Raposa Serra do Sol em terras contínuas, e não em ''ilhas''.
Eis, portanto, estabelecido o dilema entre disciplina e lealdade. Trata-se de um aparente dilema, pois a lealdade à Pátria, à Nação e ao Estado é, em síntese, manifestação de disciplina em seu grau mais elevado, considerando a missão constitucional das Forças Armadas e o juramento do militar à Bandeira Nacional. Esta lealdade se mostra, inicialmente, pela coragem de alertar a sociedade, claramente, sobre a ameaça que se está concretizando, depois de esgotados os meios de sensibilizar a liderança nacional. Cabe à sociedade, por meio de seus representantes, exercer o poder que emana do povo numa democracia. Que demonstre maturidade, dignidade e amor à Pátria, pois é hora de evidenciar que não precisa ser tutelada e se interessa pelo futuro soberano do País num mundo onde o jogo do poder é uma realidade permanente.
As Forças Armadas devem continuar alertando a Nação para não serem responsabilizadas por se omitirem em momento tão delicado como o que vive o Brasil.
Luiz Eduardo Rocha Paiva, general da reserva, foi observador militar da ONU em El Salvador (1992-1993) e comandou a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (2004-2006)