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quarta-feira, 10 de março de 2010
LULA ,UM PRÈMIO NOBEL AO CINISMO
O Estado de S. Paullo, domingo, 07 de Março de 2010 |
A decepcionante visita de Lula
Mario Vargas Llosa
Minha capacidade de indignação política atenua-se um pouco nos meses do ano que passo na Europa.
Suponho que a razão disso seja o fato de que, lá, vivo em países democráticos nos quais,
independentemente dos problemas de que padecem, há uma ampla margem de liberdade para a crítica, e a
imprensa, os partidos, as instituições e os indivíduos costumam protestar de maneira íntegra e com
estardalhaço quando ocorrem episódios ultrajantes e desprezíveis, principalmente no campo político.
Entretanto, na América Latina, onde costumo passar de três a quatro meses ao ano, esta capacidade de
indignação volta sempre, com a fúria da minha juventude, e me faz viver sempre temeroso, alerta,
desassossegado, esperando (e perguntando-me de onde virá desta vez) o fato execrável que,
provavelmente, passará despercebido para a maioria, ou merecerá o beneplácito ou a indiferença geral.
Na semana passada, experimentei mais uma vez esta sensação de asco e de ira, ao ver o risonho
presidente Lula do Brasil abraçando carinhosamente Fidel e Raúl Castro, no mesmo momento em que os
esbirros da ditadura cubana perseguiam os dissidentes e os sepultavam nos calabouços para impedir
que assistissem ao enterro de Orlando Zapata Tamayo, o pedreiro pacifista da oposição, de 42 anos,
pertencente ao Grupo dos 75, que os algozes castristas deixaram morrer de inanição - depois de
submetê-lo em vida a confinamento, torturas e condená-lo com pretextos a mais de 30 anos de cárcere
- depois de 85 dias de greve de fome.
Qualquer pessoa que não tenha perdido a decência e tenha um mínimo de informação sobre o que
acontece em Cuba espera do regime castrista que aja como sempre fez. Há uma absoluta coerência entre
a condição de ditadura totalitária de Cuba e uma política terrorista de perseguição a toda forma de
dissidência e de crítica, a violação sistemática dos mais elementares direitos humanos, de falsos
processos para sepultar os opositores em prisões imundas e submetê-los a vexames até enlouquecê-los,
matá-los ou impeli-los ao suicídio. Os irmãos Castro exercem há 51 anos esta política, e somente os
idiotas poderiam esperar deles um comportamento diferente.
DESCARAMENTO
Mas de Luiz Inácio Lula da Silva, governante eleito em eleições legítimas, presidente constitucional
de um país democrático como o Brasil, seria de esperar, pelo menos, uma atitude um pouco mais digna
e coerente com a cultura democrática que teoricamente ele representa, e não o descaramento indecente
de exibir-se, risonho e cúmplice, com os assassinos virtuais de um dissidente democrático,
legitimando com sua presença e seu proceder a caçada de opositores desencadeada pelo regime no mesmo
instante em que ele era fotografado abraçando os algozes de Zapata.
O presidente Lula sabia perfeitamente o que estava fazendo. Antes de viajar para Cuba, 50
dissidentes lhe haviam pedido uma audiência durante sua estadia em Havana para que intercedesse
perante as autoridades da ilha pela libertação dos presos políticos martirizados, como Zapata, nos
calabouços cubanos. Ele se negou a ambas as coisas.
Não os recebeu nem defendeu sua causa em suas duas visitas anteriores à ilha, cujo regime
liberticida sempre elogiou sem o menor eufemismo.
Além disso, este comportamento do presidente brasileiro caracterizou todo o seu mandato. Há anos
que, em sua política exterior, ele desmente de maneira sistemática sua política interna, na qual
respeita as regras do estado de direito, e, em matéria econômica, em vez das receitas marxistas que
propunha quando era sindicalista e candidato - dirigismo econômico, estatizações, repúdio dos
investimentos estrangeiros, etc. -, promove uma economia de mercado e da livre iniciativa como
qualquer estadista social-democrata europeu.
Mas, quando se trata do exterior, o presidente Lula se despe de suas vestimentas democráticas e
abraça o comandante Chávez, Evo Morales, o comandante Ortega, ou seja, com a escória da América
Latina, e não tem o menor escrúpulo em abrir as portas diplomáticas e econômicas do Brasil aos
sátrapas teocráticos integristas do Irã.
O que significa esta duplicidade? Que Lula nunca mudou de verdade? Que é um simples mascarado, capaz
de todas as piruetas ideológicas, um político medíocre sem espinha dorsal cívica e moral? Segundo
alguns, os desígnios geopolíticos para o Brasil do presidente Lula estão acima de questiúnculas como
Cuba, ou a Coreia do Norte, uma das ditaduras onde se cometem as piores violações dos direitos
humanos e onde há mais presos políticos.
O importante para ele são coisas mais transcendentes como o Porto de Mariel, que o Brasil está
financiando com US$ 300 milhões, ou a próxima construção pela Petrobrás de uma fábrica de
lubrificantes em Havana. Diante de realizações deste porte, o que poderia importar ao "estadista"
brasileiro que um pedreiro cubano qualquer, e ainda por cima negro e pobre, morresse de fome
clamando por ninharias como a liberdade? Na verdade, tudo isto significa, infelizmente, que Lula é
um típico mandatário "democrático" latino-americano.
Quase todos eles são do mesmo feitio, e quase todos, uns mais, outros menos, embora - quando não têm
mais remédio - praticam a democracia no seio dos seus próprios países, mas, no exterior, não têm
nenhuma vergonha, como Lula, em cortejar ditadores e demagogos, porque acham, coitados, que desta
maneira os tapinhas amistosos lhes proporcionarão uma credencial de "progressistas" que os livrará
de greves, revoluções e de campanhas internacionais acusando-os de violar os direitos humanos.
Como lembra o analista peruano Fernando Rospigliosi, em um artigo admirável: "Enquanto Zapata morria
lentamente, os presidentes da América Latina - entre eles o algoz cubano - reuniam-se no México para
criar uma organização (mais uma!) regional. Nem uma palavra saiu dali para exigir a liberdade ou um
melhor tratamento para os mais de 200 presos políticos cubanos." O único que se atreveu a protestar
- um justo entre os fariseus - foi o presidente eleito do Chile, Sebastián Piñera.
De modo que a cara de qualquer um destes chefes de Estado poderia substituir a de Luiz Inácio Lula
da Silva, abraçando os irmãos Castro, na foto que me revoltou o estômago ao ver os jornais da manhã.
Estas caras não representam a liberdade, a limpeza moral, o civismo, a legalidade e a coerência na
América Latina. Estes valores estão encarnados em pessoas como Orlando Zapata Tamayo, nas Damas de
Branco, Oswaldo Payá, Elizardo Sánchez, a blogueira Yoani Sánchez, e em outros cubanos e cubanas
que, sem se deixarem intimidar pelas pressões, as agressões e humilhações cotidianas de que são
vítimas, continuam enfrentando a tirania castrista. E se encarnam ainda, em primeiro lugar, nas
centenas de prisioneiros políticos e, sobretudo, no jornalista independente Guillermo Fariñas, que,
enquanto escrevo este artigo, há oito dias está em greve de fome em Cuba para protestar pela morte
de Zapata e exigir a libertação dos presos políticos.
O curioso e terrível paradoxo é que no interior de um dos mais desumanos e cruéis regimes que o
continente conheceu se encontrem hoje os mais dignos e respeitáveis políticos da América Latina.