O GLOBO
Mentiras no planalto
Luiz Garcia
Se Fulana convoca Beltrana para encontro secreto, à meia-noite, no meio de densa floresta, é perfeitamente possível a qualquer uma das duas dizer depois que realmente estiveram juntas, ou que não houve conversa alguma.
Naturalmente, uma estará mentindo — mas, como saber? Em muitos casos, isso pode não fazer qualquer diferença. Mas, se o alegado e negado encontro tiver ocorrido no Palácio do Planalto, em hora de expediente, juntando a então secretária da Receita Federal, Lina Vieira, e a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, a opinião pública pode se considerar diante de um dilema inconcebível; por isso mesmo, inaceitável.
Inevitavelmente, uma das duas está mentindo. E sobre questão de fato, num episódio que não admite erro de interpretação ou falha de memória. Lina afirma que Dilma lhe pediu que agilizasse a investigação da Receita sobre empresas e bens da família Sarney. E diz que, só mais tarde, suspeitou das razões do pedido: mais precisamente, quando se soube que José Sarney se tornaria presidente do Senado com as bênçãos do Palácio do Planalto. No momento do encontro, entendeu que a ministra estava pedindo apenas agilidade no trabalho, não que a Receita limpasse a ficha da tribo dominante no Maranhão.
Sente-se no ar um cheiro de suposta ingenuidade.
Seja como for, a conversa entre as duas senhoras tornou-se fato político importante, provocando o depoimento desta semana da ex-secretária na Comissão de Justiça do Senado. Obviamente, porque, entre conversa e depoimento, estourou o escândalo dos abusos cometidos por senadores: uso de dinheiro público para confortos pessoais e familiares, nomeação de protegidos, aos magotes, para cargos no Legislativo que raros sequer fingiam que exerciam etc. Nessa maré de escândalos, há motivo e espaço para ondas e ondas de abusos contra o fisco.
A ex-secretária da Receita pode ter cometido o pecado de inocência exagerada em relação à convocação ao Planalto. Dilma certamente não precisava chamá-la ao palácio apenas para pedir que trabalhasse direitinho, com agilidade e eficiência. Ou a ministra tinha o direito de supor que, sem cutucadas suas, cara a cara, a turma da Receita não trabalharia como deve? De qualquer forma, as mencionadas cutucadas não deveriam ser dadas pelo ministro da Fazenda? Não está em discussão apenas o conteúdo da suposta conversa entre as duas senhoras. Dilma não se limita a contradizer a versão de Lina: vai bem mais longe, ao afirmar que não houve encontro algum. É a sua palavra contra a da ex-secretária.
Outras duas senhoras também dizem coisas opostas.
Iraneth Weiler, chefe de gabinete de Lina, diz que a secretáriaexecutiva da Casa Civil, Erenice Guerra, foi à sede da Receita confirmar o encontro. O que, claro, Erenice desmente.
De longe, o cidadão comum, por enquanto, tem direito apenas a uma conclusão sem margem ou risco de erro: o pessoal de Brasília continua mentindo à beça.