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terça-feira, 5 de fevereiro de 2008
Carta de um Soldado
Dia 1º de março próximo completo meio século no Exército. Naquele tempo, acreditava-se muito no chefe. Ele era um timoneiro acenando o rumo, um leito direcionando o rio. Parecia um berrante puxando a boiada. O chefe transmitia confiança, entusiasmo, esperança. O Exército era pobre. Não tinha armamento, transporte, equipamento. Tudo era obsoleto. Os Quartéis eram velhos. Pareciam museus. Estavam mais para o passado do que para o futuro. O salário não tinha nada de valente. Estava mais para pobre do que para rico. Na metade de cada mês, já respirava com dificuldade. Era um sonho misturado com pesadelo. Mas, naqueles velhos casarões, já maltratados pelo tempo, a alvorada representava sempre um novo dia, um dia melhor. Gerava na gente uma alma nova, uma esperança cheia de vida, uma vida cheia de esperança. O entusiasmo dos jovens tinha a força do vento que move as palmeiras, a beleza do orvalho que cobre a relva. O soldado olhava para o futuro não como alguém que olha para as estrelas, mas como alguém que vê a chuva caindo do céu. Nada era ficção, tudo era realidade. A esperança do soldado não era uma árvore retorcida no cerrado, mas um ipê fincado na floresta. Todos acreditavam na carreira militar como os rios acreditam no mar, a primavera acredita nas flores. A profissão de soldado era como um planalto que encontra a montanha, era como o altar que acolhe a virtude. Não havia ideal abafado nem esperança contida, mas estrelas brilhando no céu. Ninguém era chamado de inimigo nem atirado à fogueira. Todos respeitavam a farda como os fiéis respeitam a batina. Todos admiravam o soldado como o mar admira a praia. Seus dogmas eram sagrados. Todos se uniam em torno deles como se fossem cristãos diante de Deus. A lealdade ao Exército era mais do que um compromisso, era um juramento. Ninguém trocava a sua casa de sapê, onde brilha o luar, por castelo de granito, onde faíscam os espinhos. Hoje tudo mudou. O Exército melhorou de qualidade. Está melhor equipado, mais bem adestrado. Os Quartéis deixaram de ser museus. Muitos são modernos. A saúde trouxe alegria para a família militar. O soldado, porém, foi expulso da sua terra e confinado no deserto, onde resiste como o cacto. Vive sem água e sem comida. Ninguém mais ouve a sua voz. Voz de soldado não é como um choro de criança, mas como um lamento de estátua. Hoje são muitos os soldados que abandonam o deserto árido em busca de espaços verdejantes. Os salários deram uma respirada por pouco tempo. Hoje estão represados. Parecem carro atolado no brejo sem boiada para puxá-lo. São como brisa estacionada nos vales, sem vento para movê-la. Enquanto isso, outros salários sobem a montanha, empurrados pela ventania. Alguns alçam vôos como se fossem nuvens. O que frustra o soldado não é a força da ventania, mas a ausência do vento. O que dói nele é receber tratamento de filho rejeitado, de espécie em extinção, de objeto sem valor, depois de ter dado a alma na formatação de uma Pátria grande e unida. Para ele a alvorada nasce desbotada, o sol se esconde nas nuvens, as tardes morrem sem as cores. Querem acabar com o soldado, tirando-lhe o valor e asfixiando-lhe o salário. A voz de um soldado deve ter o brilho de sua espada. Ela nunca deve ser usada como instrumento de ameaça à paz, mas como voz de proteção aos injustiçados. As injustiças levaram as mulheres às ruas. Elas lutam por respeito às Forças Armadas e por melhores condições de vida. Nos Quartéis, o silêncio dos homens estampa uma alma frustrada, uma esperança minguante, um sonho ferido. É triste ver um rio secar e as suas cachoeiras sumirem. É triste assistir calado ao menosprezo do bem e à valorização do mal. Triste mesmo é não ouvir o rangido dos cocões por falta de bois para puxar o carro.
Gen Bda R1 José Batista Queiroz – jobaque@terra.com.br