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domingo, 11 de setembro de 2011

 DELÍRIO  RECORRENTE
Uma constatação feliz de Sônia van Dijck.

Vejamos o que e como acontece.
Vai que, por isso ou por aquilo, o Ministério Público resolve investigar um figurão do poder. De repente, a PF parece ser livre para fazer seu trabalho e começa a investigar. A mídia fica sabendo que tem algo de podre no reino da Dinamarca (a shakespeariana é que está aqui referida) e dá a notícia. Logo, um batalhão de jornalistas começa a fazer contatos, buscar documentos, entrevistar um e outro, e monta a história quase completa. Páginas de revistas e de jornais, minutos e minutos de telejornais trazem o novo escândalo do governo. Aí, o Ministério Público entra em ação, para que tudo seja apurado. Às vezes, acontecem prisões e algemas são usadas para conter os acusados. Mas, como não são algemas de ouro, os envolvidos sentem-se ofendidos e uma bando de sábios politicamente corretos da República falam em desrespeito aos “direitos humanos” e outras coisas assim, porque todos os pensadores consideram indigno que bandido figurão seja algemado, e os bandidos figurões, por outro lado, acham-se ofendidos em suas dignidades banditícias diante de algemas impróprias ao status de banditismo chapa branca.
Aí, no nível manifesto do delírio, a confusão se forma: já não se discute o delito. A atenção é desviada para as algemas; pouco importa o crime; importa que delinquente chapa branca não use algemas. Implicitamente, ninguém protesta (porque nunca houve tal protesto) que algemas sejam usadas para criminosos não participantes do poder.
O protesto se levanta contra o uso de algemas quando se trata de participantes do poder.
Até a governanta sai de seus afazeres mais sérios na organização do serviço da sala de visitas e dos bastidores do poder, para tratar das tais algemas usadas nos figurões.
Está criada a geleia geral, e figurões que ainda não foram algemados começam a falar em criação de uma nova lei que trate do uso de algemas.
Pode até ser que a nova lei sobre as algemas estabeleça um projeto do PAC para a confecção de algemas em ouro, destinadas a bandidos chapa branca (figurões políticos e empresários envolvidos na roda do crime) – pelo preço do ouro no mercado, a coisa vai inviabilizar outros projetos do PAC...
Pois é nesse caldo de cultura, que nenhum jornalista estrangeiro consegue penetrar, pois obedece a códigos restritos à brasilidade, que se instaura a brecha para o delírio recorrente.
Todos os políticos envolvidos em crimes (propina, desvio de verbas, assalto aos cofres públicos, superfaturamento de obras, caronas ilícitas em jatinhos de empresários, farra em motel, nepotismo, uso indevido de cartão corporativo, sonegação de impostos, etc. – o catálogo é extenso uma vez que a inteligência criminosa não tem limites...) afirmam que é tudo mentira e coisa e tal. Todos são as criaturas mais idôneas da República e até dizem liberar sigilo fiscal, bancário e telefônico.
E eis que surge o argumento mais fortemente babaca: tudo não passa de intriga da mídia burguesa, golpista, elitista.
É o seguinte. Um bando de jornalistas pirados se transforma virtualmente em ministros, em secretários executivos, em diretores de estatais, e passa a ocupar cargos e funções no poder, nomeia amigos, companheiros de partido, compadres, churrasqueiros, amantes, faz contratos com empresas de esposas.
Esse bando de jornalistas pirados, ocupando cargos e funções no mundo virtual, começa a exigir propinas, superfaturar obras, etc., etc.
Feito isso, esse bando de jornalistas pirados começa a noticiar que os figurões reais do governo, ocupando os mesmos cargos e funções que eles exercem virtualmente cometem crimes contra a República.
Imediatamente, os ministros reais, os secretários executivos, os diretores, os peões do poder, os oportunistas reais começam a dizer que tudo não passa de invenção da mídia golpista, elitista, burguesa.
E aparecem entrevistas, declarações, notas oficiais, para dizer que a imprensa e as TVs mentem. Tem até figurão que vai ao Congresso fazer o teatro aguardado por seus companheiros, para dizer: “é mentira!”, em solene arrogância protegida pela impunidade. Tem até figurão que declara solenemente, para impor o delírio como realidade real : “Só um político brasileiro tem capacidade de pautar ’Veja’ e ‘Folha’ e de acumular tantas maldades fazendo com que reiterem e requentem mentiras e matérias que não se sustentam por tantos dias.” (ex- ministro Rossi).
Todos os figurões da roda do crime dizem-se probos, honestos, impolutos, idôneos, angelicais – e a redundância serve para o faz de conta de verdade verdadeira.
A imprensa inventa crimes contra a República. Os jornalistas travestem-se de figurões do poder para inventar e noticiar crimes que os políticos jamais cometem.
Surreal??!! Com certeza! É o Brasil de hoje.
Figurão brasileiro participante do poder jamais comete crime. No Brasil, é a imprensa quem comete os crimes e, depois, joga tudo na conta dos poderosos políticos.
O pior é que essa complexa engenharia do nível manifesto do delírio é tão bem montada e tão repetida que é bem possível que os corruptos acreditem que o delírio seja realidade real, capaz de convencer os brasileiros que o que eles fizeram e fazem no mau uso dos cargos e funções públicos é perfeitamente normal. A maldade está só na cabeça dos que publicam a notícia.
Nas entrelinhas das notas oficiais e das declarações ao Congresso, o que se tem é que os brasileiros não devem ler jornais e revistas e nem assistir aos telejornais, pois todos mentem e os poderosos são honestíssimos.
Em um país de baixo nível de escolaridade e de paupérrimo interesse pelas questões da política nacional, o discurso delirante recorrente dos figurões envolvidos em corrupção acaba se tornando convincente, incentivando a falta de leitura de jornais e revistas e o pouco interesse pelos telejornais de conteúdo político.
Tomando como possibilidade que a mentira repetida possa ser interpretada como verdade, esse discurso recorrente do delírio que instaura um noticiário mentiroso em oposição a políticos e empresários idôneos pode ser aceito como verdadeiro por incautos. O resultado será uma sociedade civil a serviço da corrupção.
Continuo sem entender o fato de Fernandinho Beira-Mar não ter feito carreira política. Hoje, está amargando uma pena severa, enquanto tantos outros assaltam a República e fazem pose de honestos.
E no delírio recorrente dos políticos acusados de corrupção o que acontece com os personagens? Bem... De repente o Ministério Público fica em silêncio. A PF abandona as investigações. Um ou outro mais acuado pede demissão e vai pra debaixo do tapete em quarentena para fugir da mídia. Ninguém fala em devolução aos cofres púbicos da dinheirama roubada.
O que acontece com as personagens do delírio?
Os acusados de corrupção ficarão impunes.
Os contribuintes continuarão sabendo que seus impostos estão em paraísos ficais ou em coberturas de edifícios residenciais de luxo ou se transformaram em fazendas.
As peças do xadrez se movimentam para ocupar a casa vaga – a fila anda e com fome de grana...
Basta esperar o novo escândalo e seguir o roteiro recorrente.
Os brasileiros perderam a capacidade de reação.