Maria Lucia Victor Barbosa
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Cabore
MORAL EM FRANGALHOS
MARIA LUCIA VICTOR BARBOSA
23 de junho de 2006
Disse o escritor argentino, Jorge Luís Borges: “somos nosso passado”. Nada mais certo. E quando nesse momento alguns poucos se sentem perplexos diante da aprovação da maioria da população com relação ao festival de cinismo, mentiras e falcatruas que emanam das mais altas autoridades, deveria a minoria indignada buscar compreender o que fomos para entender o que somos.
É preciso recordar que nossos colonizadores interpuseram um oceano entre si e os controles sociais de sua pátria e, no ar afrodisíaco dos trópicos, afrouxaram ainda mais uma moral já de si débil. Foi se produzindo na colônia portuguesa, apesar da rigidez aparente das proibições eclesiásticas e inquisitoriais, a plasticidade de costumes, onde o suborno, a ganância, a corrupção e a mentira se converteram em “virtudes” a serem comungadas por toda sociedade. Aprendemos desde cedo a simular e a mentira trespassou todas as nossas instituições. E na sociedade marcada pela gritante desigualdade entre senhores e escravos, não prosperaram valores relativos ao mérito e ao esforço individual que objetivassem o êxito. Nascemos como Terra de Macunaíma. Evoluímos como Reino do Dá-se-um-jeito.
A essas características particulares some-se o processo mundial, que advindo da Revolução Industrial inglesa e passando pela evolução dos meios de transporte e comunicação, foi tornando o mundo uma “aldeia global”. Massificaram-se costumes e usos. Na democracia da calça jeans já não se distingue com clareza classes sociais. Como tudo na vida, há vantagens e desvantagens nesses avanços, dependendo do uso que se faz deles e no Brasil nos tornamos herdeiros do nosso tempo.
Uma coisa, porém, é certa: se o sistema comunista fracassou em propiciar a igualdade profetizada por Marx, foi paradoxalmente o progresso do capitalismo que trouxe consigo a liberdade, inclusive, de mercado e, com esta, a concorrência que permite a libertação dos monopólios estatais, portanto, a livre escolha pelos indivíduos de bens conforme preços, gostos e necessidades. Isto fez emergir sociedades mais igualitárias e prósperas, mas nelas avançou, paradoxalmente, o individualismo que esvazia os cidadãos de civismo. As pessoas se tornaram mais iguais e, ao mesmo tempo, estranhas umas as outras.
No Brasil nunca atingimos o capitalismo avançado, que nos faria abastados. Por conta de nossa formação histórica temos grande apego ao pai Estado e continuamos dele dependentes como um povo criança. Desse modo, apesar de sermos ricos em natureza e tamanho, somos mal governados e preferimos manter nosso paquidérmico Estado, excessivamente burocratizado, ineficiente e corrupto como um todo. Mas, apesar disso, entramos na corrente mundial e não somos de forma alguma a Ilha de Vera Cruz, seguindo cada vez mais individualizados e esvaziados de todo civismo.
Todavia, não se pode dizer que não tivemos ascensão das classes mais baixas. Isso é claro se observamos que vivemos numa República sindicalista, onde o presidente se gaba constantemente de sua origem pobre, assim como muitos de seus companheiros governantes. Porém, por aquela sempre presente ironia do destino, ao chegar ao poder os outrora defensores dos mais pobres enriqueceram e se esqueceram de suas raízes e promessas. Pior. Com eles veio o que Alex de Tocqueville chamou de males da igualdade, entre os quais se inclui o desejo dos mais fracos atraírem os fortes ao seu nível, mas para torná-los iguais no aviltamento e na servidão. Em outras palavras, a república sindicalista nos nivelou por baixo.
Assim, nessa encruzilhada de nossa história, sem exemplos a seguir, com a educação atingindo seu nível mais baixo, com nossas instituições profundamente deterioradas, atingimos o fundo do poço em termos morais.
Como disse Silvio Abreu, autor da novela Belíssima, nas páginas amarelas da Veja (21/06): “a moral do país está em frangalhos”. Ele constatou através de pesquisa que as pessoas já não valorizam a retidão de caráter, achando enfadonhos os personagens bonzinhos das novelas. Ficou também claro para o novelista, que o nível intelectual do brasileiro baixou e que por isso “não dá para aprofundar nenhum tema, porque o público não consegue acompanhar”. Abreu liga tudo isso à tolerância aos desvios de conduta relativos aos escândalos recentes da política.
Estamos, pois, em nossa fase mais decadente. Nos tornamos mais medíocres. Fizemos da amoralidade a regra. Entretanto, somente nós mesmos poderemos romper esse atraso através de esforço próprio e escolhas políticas certas. Aos futuros governantes compete ter menos projetos de poder pessoal e mais visão de bem comum. Trabalho e não esmolas; saúde e não filas da morte do SUS; educação e não aprendizado de malandragem; leis justas e isonômicas, essas devem ser as aspirações a se fundir num projeto comum para o Brasil. Como falou Euclides da Cunha: “ou progredimos ou desaparecemos”.
Maria Lucia Victor Barbosa