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segunda-feira, 8 de maio de 2006

Congresso em situação irregular

Congresso em Foco 4 de maio de 2006

Legislativo fora da lei
Renan evita colocar em votação vetos presidenciais, colocando o Congresso em situação que juristas apontam como flagrantemente irregular
Tarcisio Nascimento*

Há atualmente 141 vetos presidenciais em tramitação no Congresso Nacional. Tratam-se de matérias aprovadas pelos parlamentares e que foram parcial ou integralmente vetadas pelos presidentes da República nos últimos, atenção para a data, 12 anos! Oitenta dessas propostas legislativas encontram-se na primeira situação (veto parcial), e 61 foram completamente recusadas pelo chefe do Executivo.
Os motivos que levam os congressistas a não analisarem os vetos presidenciais variam. Às vezes, faltam acordos políticos para deliberar ou inexiste interesse pelo tema. Mas, em grande parte dos casos, o governo é o principal interessado em evitar que os vetos sejam votados. Uma das matérias que adormecem no Parlamento pode pôr abaixo a Lei de Responsabilidade Fiscal. Outras simplesmente estouram o orçamento federal, elevando gastos bem além da capacidade do Tesouro Nacional.
No ano passado, o vice-líder do governo no Congresso, senador Fernando Bezerra (PTB-RN), disse que os vetos pendentes de votação trariam um impacto orçamentário próximo de R$ 12 bilhões. Procurado pelo Congresso em Foco, o petebista afirmou, por meio de sua assessoria parlamentar, que o impacto hoje é ainda maior, embora tenha se tornado incalculável em razão da chegada de novos vetos.
Embora o problema seja antigo, a oposição avalia que o atual presidente do Senado, senador Renan Calheiros (PMDB-AL), a quem cabe colocar os vetos na pauta de votação, tem revelado particular predisposição para mantê-los na geladeira. O que leva a uma situação considerada grave por juristas.
Mamede Maia, professor de Direito Constitucional da Universidade de Brasília (UnB), ressalta a clareza do artigo 66, parágrafo 6º, da Constituição Federal . Ele estabelece que, se não é votado em até 30 dias após o seu recebimento, o veto tranca a pauta, permitindo apenas a votação de medidas provisórias. O problema é que, ao mesmo tempo em que deixa de votar os vetos, os parlamentares têm aprovado outras matérias, o que caracterizaria uma irregularidade capaz até mesmo de servir de base para questionar juridicamente a validade dessas proposições legais que furaram a fila de votações - como, por exemplo, o orçamento federal de 2006 (aprovado em abril, com quatro meses de atraso).
"O Congresso está desrespeitando a Constituição", afirma Ives Gandra Martins, professor emérito da Universidade Mackenzie (SP) e um dos mais reconhecidos constitucionalistas do país. Ele se surpreendeu ao ser informado pelo Congresso em Foco sobre o número de vetos presidenciais que aguardam a análise dos parlamentares. "Isso é grave", declarou.
Mamede Maia diz que, em tese, o presidente do Senado - que acumula a presidência do Congresso - pode ser enquadrado na prática do crime de responsabilidade. Isto é, ele estaria sujeito até ao impeachment por não cumprir sua obrigação constitucional de colocar os vetos em votação. "É difícil responsabilizar o presidente do Congresso por desrespeitar a Constituição, mas ele tem que respeitá-la. É preciso que o instrumento do veto seja valorizado. É preciso que o Congresso Nacional se pronuncie", apela o professor da UnB.

Oposição pressiona
Com o objetivo de cumprir o que determina a Constituição, os deputados Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP) e Rodrigo Maia (PFL-RJ) recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que a corte obrigue Renan a colocar na pauta de votações os vetos presidenciais. Os mandados de segurança foram impetrados um em julho de 2005 (MS 25443) e o outro no mês passado (MS 25939), ambos com pedidos de liminar. Ou seja, solicitando a interferência imediata do STF em favor da apreciação dos vetos antes mesmo do julgamento definitivo da ação judicial.
Nenhum dos dois processos foi ainda julgado. No último dia 10, o ministro Sepúlveda Pertence negou a liminar pedida por Rodrigo Maia, que pretendia colocar os vetos na pauta antes da votação do orçamento da União deste ano (aprovado em abril pelo Congresso, com quatro meses de atraso). Sepúlveda reconheceu, porém, que o "Congresso Nacional não tem observado a prioridade conferida à apreciação dos vetos presidenciais pelos preceitos constitucionais".
Ontem, o Psol ajuizou no Supremo uma ação direta de inconstitucionalidade questionando os critérios regimentais utilizados pelo Congresso para a votação dos vetos presidenciais. O ex-petista deputado Babá (Psol-PA) diz que o fato de o Parlamento não apreciar os vetos presidenciais só mostra "a subserviência do Legislativo perante o Executivo": "Apesar de dar poderes excessivos ao presidente e soar até mesmo como uma medida autoritária, o veto é um instrumento garantido ao presidente da República. Mas não analisar o que o Executivo está vetando, isto sim é um absurdo".
O líder da minoria na Câmara, deputado José Carlos Aleluia (PFL-BA), critica severamente o comportamento de Renan: "Ele não coloca os vetos em pauta porque sabe que a oposição vai derrubar vários vetos". Acusando o presidente do Congresso de omissão, Aleluia conclui: "Ele está contribuindo para desgastar a imagem do Congresso. É dever do presidente do Congresso colocar os vetos na pauta de votações".
Líder do seu partido na Câmara, o pefelista Rodrigo Maia engrossa o coro: "Quando não se votam os vetos, a democracia não é respeitada". Ives Gandra encampa a afirmação e afirma, à luz da Constituição, que, se Renan não regularizar logo a situação, "será obrigado a submeter os vetos a deliberação" pelo Supremo. Procurado insistentemente pelo Congresso em Foco para se manifestar sobre o assunto, o presidente do Senado não se pronunciou.
Um dos líderes da base governista, porém, considerou a reivindicação da oposição legítima, mas qualificou as ações impetradas no STF como uma manobra destinada a constranger o presidente Lula e o presidente do Congresso. Seguem as palavras do vice-líder do PT na Câmara, deputado Luiz Alberto (RJ): "Eu já esperava que a oposição utilizasse todos os mecanismos e instrumentos possíveis, mesmo legítimos, num ano eleitoral. É interesse eleitoral. Quando o PT era oposição, nós nunca fizemos isso. Isso só demonstra o desespero da oposição".
Responsabilidade solidária
Apesar de a responsabilidade constitucional de colocar os vetos presidenciais em votação ser de Renan, alguns parlamentares dividem entre governo e oposição a responsabilidade política pela situação.
O vice-líder do PSDB na Câmara, deputado Eduardo Barbosa (MG), informa que o colégio de líderes não tem discutido o tema. "Infelizmente, não temos visto uma discussão do colégio. As lideranças têm que decidir sobre isso para despertar o interesse dos parlamentares. O Congresso não discute mais a fundo as questões. O jogo político interfere em tudo", diz Barbosa, que ficou surpreso ao saber que a lista de vetos já passava de cem.
"Isso tudo? Que isso?", reagiu. O tucano também desconhecia que a Constituição obriga os parlamentares a analisar os vetos presidenciais antes de qualquer outra proposição."Não sabia disso. Interessante. Esse é mais um motivo para que as lideranças coloquem os vetos em análise", afirmou.
O líder do PL na Câmara, deputado Luciano Castro (RR), coloca a culpa da não apreciação dos vetos na falta de acordo político entre oposição e governo. "O presidente do Congresso tem que sentar com o Aldo Rebelo (presidente da Câmara) e definir uma pauta mínima até o dia 15 de junho. Quanto mais demora, mais vetos se acumulam. Tem que haver negociação não só para os vetos, mas para os outros projetos", defende, acrescentando que a edição exagerada de medidas provisórias e a burocracia também atrapalham a votação dos vetos.
Os vetos mais temidos
Enquanto a Constituição é descumprida, o governo adia algumas batalhas extremamente desagradáveis. Um projeto que poderia dar tremenda dor de cabeça à administração Lula é a Lei de Responsabilidade Fiscal, sancionada pelo então presidente Fernando Henrique há seis anos com 26 vetos, até hoje não examinados. A derrubada de apenas um dos vetos poderia pôr em polvorosa o mercado financeiro e aqueles que aplaudem o roteiro ortodoxo seguido pela política econômica. Ele fixa um limite máximo para gastos com juros da dívida pública, afrouxando na marra a austera conduta que o Banco Central tem demonstrado no campo monetário.
Outro veto que preocupa os governistas diz respeito ao Plano Nacional da Educação. Também vetado parcialmente durante a gestão de FHC, em 2001, o Plano sofreu nove alterações. O projeto original previa elevação das despesas no setor, estimada na época em R$ 5 bilhões anuais, até que fosse atingido, em uma década, a destinação de 7% do Produto Interno Bruto (PIB) à área educacional. Hoje, União, estados e municípios aplicam 4,5% do PIB em educação.
Outro veto temido enfrenta a oposição da poderosa bancada ruralista no Congresso. Ela já anunciou que pretende derrubar o veto de Lula ao projeto de lei que dispõe sobre a repactuação de dívidas oriundas de operações de crédito rural na área de atuação da Agência de Desenvolvimento do Nordeste, a Adene. Em jogo, mais alguns bilhões dos cofres federais. (leia mais).
A grande maioria dos vetos tem origem ainda na gestão do ex-presidente Fernando Henrique. Alguns vetos nunca chegaram a ser lidos. Explica-se. Para contar o prazo de 30 dias, entende-se que a data de "recebimento" mencionada pela Constituição só conta a partir da leitura das razões do veto em sessão do Congresso - que é como se chama a reunião conjunta da Câmara e do Senado.
Muitos, no entanto, foram lidos e depois deixados de lado. O veto mais antigo, de 1994, foi aposto pelo ex-presidente Itamar Franco a um projeto que regulamentava a profissão de desenhista. A maior parte trata de assuntos mais complicados. São legislações que versam sobre políticas públicas, direitos humanos, leis trabalhistas, subsídios e benefícios criados por parlamentares e derrubados pelos presidentes Itamar, Lula e FHC com o mesmo argumento: contrariedade ao interesse público e inconstitucionalidade.
Sobre a tramitação
Se é verdade que os dispositivos constitucionais relativos à votação de vetos presidenciais não são cumpridos há tempo, também é certo que o Congresso já andou melhor nesse terreno. Durante sua gestão como presidente do Senado, o ainda senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA) colocou dezenas de vetos em apreciação e chegou bastante perto de zerar as pendências em relação aos vetos presidenciais.
Em maio de 2004, quando o Congresso era presidido pelo senador José Sarney (PMDB-AP), deputados e senadores votaram 89 vetos, incluindo alguns assinados pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Todos eles foram mantidos. Antes, a última sessão para a análise de vetos ocorreu em agosto de 2000, quando foi restituída a anistia das multas aplicadas pela Justiça Eleitoral, vetada por Fernando Henrique. Nos oito anos de governo FHC, além desse veto, o Congresso derrubou apenas um outro, em 1997, feito parcialmente ao projeto de planejamento familiar.
A última sessão conjunta para exame de vetos ocorreu em dezembro do ano passado, quando o Congresso manteve a decisão do presidente Lula de vetar projeto que concedia reajuste salarial de 15% aos servidores do Tribunal de Contas da União (TCU). No entanto, em agosto de 2005, a oposição conseguiu derrubar, com ampla vantagem, os vetos do presidente Lula aos reajustes dos funcionários da Câmara e do Senado. Um veto presidencial não era derrubado havia cinco anos.
Para que o veto caia, é preciso que ele seja rejeitado por pela maioria absoluta dos parlamentares de cada Casa, ou seja, pelo menos 257 deputados federais e 41 senadores. A votação é secreta.
Não há previsão de quando será realizada nova sessão conjunta para analisar os vetos presidenciais, segundo a Secretaria Geral do Senado. A assessoria de imprensa do presidente do Congresso informou apenas que as lideranças ainda não chegaram a um acordo sobre o tema.
Por isso mesmo, a oposição decidiu não largar mais o pé de Renan. Na sessão de ontem do Senado, o senador César Borges (PFL-BA) cobrou dele a convocação de sessão conjunta para examinar o veto do presidente Lula ao projeto da renegociação das dívidas dos produtores rurais do Nordeste. "Vossa Excelência, que foi o principal artífice para que votássemos aquele projeto, tem outro papel fundamental a cumprir: o de fazer com que esta Casa possa apreciar o veto do presidente da República. É um processo de afirmação do Executivo. Ele não sancionou, fez um veto completo", reclamou o pefelista. *Colaborou Edson Sardinha


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