Translate

quinta-feira, 31 de maio de 2012

BODE ESPIATÓRIO


- O Estado de São Paulo - Roldão Arruda - 29/05/2012

"A conclusão mais triste seria a dos bodes expiatórios: dizer que algumas pessoas, de maneira isolada, como uma espécie de psicopatas, começaram a torturar pessoas. Não adianta apenas mencionar mais uma vez o major Curió e o coronel Ustra. Vai ficar a pergunta: qual foi o general que mandou?" ( Dimitri Dimoulis)

Silêncio coletivo dos militares e falta de foco são armadilhas no caminho da Comissão da Verdade, adverte

O silêncio em massa dos militares (garantido por habeas corpus), a falta de foco nas investigações e a tendência à judicialização são algumas das armadilhas que a Comissão da Nacional da Verdade vai enfrentar nos próximos meses. Texto completo
Na avaliação do jurista Dimitri Dimoulis, professor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, se não conseguir desarmá-las, o grupo corre o risco de produzir um relatório frouxo e de pouca utilidade para o esclarecimento dos fatos.
Dimoulis formou-se em direito pela Universidade Nacional de Atenas e é pós-doutorado pela Universidade Saarland, na Alemanha. Ensina direito público e também dirige o Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais. Na entrevista a seguir, ele analisa os problemas no caminho da Comissão.

Entre os países da América Latina que enfrentaram ditaduras, o Brasil foi o último a criar uma comissão da verdade. Como vê isso?

 A ideia de comissão da verdade como instrumento de reparação histórica é nova e tem várias vantagens. A principal delas é o efeito educativo. Quanto ao atraso, não é significativo. É melhor agora do que nunca. O problema que vejo pela frente são as armadilhas no caminho da comissão.

Que tipo de armadilha?

Uma delas é o foco de investigação muito amplo, abrangendo crimes desde a época de Getúlio Vargas. Outra é a limitação dos poderes investigativos. O pessoal do Exército pode simplesmente resolver não responder a nenhuma pergunta.

O que recomenda?

Não há manual de instruções. Mas existem pontos para os quais a comissão deve ficar atenta para não produzir um relatório vago, na linha todo mundo é culpado, lamentamos e pedimos desculpas. A ideia de que uma comissão constituída pelo Estado possa descobrir a verdade é problemática.  Em um regime pluralista, aberto, democrático, será que podemos ter esse tipo de ilusão? Não tenho muita certeza. Onde está a verdade? Numa caixinha? Não sei. Será que sete ou dez pessoas podem descobrir a verdade? Sou a favor da comissão da verdade, mas acho que deveríamos nos dedicar mais à reflexão sobre o que nos aguarda.

O que nos aguarda?

Como já mencionei, um dos principais risco é o campo muito amplo de investigação. Não é possível investigar tudo. Sou a favor de se definir um período e os tipos de casos a serem investigados. Pode-se estabelecer que o foco recairá sobre casos de tortura e os desaparecimentos de pessoas. Alguém pode dizer: vamos perder uma chance histórica de investigar tudo. Respondo que quem trabalhar com essa pretensão não leva a lugar nenhum.

E quanto ao silêncio dos militares?

Eles podem continuar alegando que não possuem arquivos e recorrer ao habeas corpus para não depor perante a comissão. Que tipo de estratégia ela deve adotar numa situação dessas? Uma alternativa é recorrer a arquivos que existem aqui e no exterior, como aconteceu na Guatemala, Argentina e outros países. Nenhuma comissão da verdade começa do zero. No caso brasileiro existe muita documentação. Processos que foram abertos no Uruguai, Chile e Argentina sobre a Operação Condor revelam muito sobre a ditadura brasileira. As organizações não governamentais tem muito material.

Não é possível fazer nada diante da negativa em massa?

A questão dos militares é política e complexa e deve ficar clara desde já. O que sendo está investigado basicamente é o Exército, as forças de segurança, a polícia. Se eles negam em massa, o que vai dizer a comissão? Infelizmente não pode fazer nada. A grande armadilha nesse caso seria judiciar o trabalho. Qualquer réu tem o direito de ficar calado no processo penal. Cabe à comissão numa situação dessas definir uma estratégia clara para enfrentar o problema. Não adianta se conformar e daqui a dois anos, no relatório final, apresentar um pedido de desculpas sobre o que ocorreu. Quanto a isso já temos um bom relatório, produzido pelo Ministério da Justiça. É preciso ir além. Já sabemos muitas coisas sobre o lado das vítimas. E o dos agressores? Será que José torturou? Quem teve responsabilidades? A conclusão mais triste seria a dos bodes expiatórios: dizer que algumas pessoas, de maneira isolada, como uma espécie de psicopatas, começaram a torturar pessoas. Não adianta apenas mencionar mais uma vez o major Curió e o coronel Ustra. Vai ficar a pergunta: qual foi o general que mandou?

Apontaria alguma outra armadilha?

Os arquivos da repressão nem sempre dizem a verdade. Por causa disso acho necessário incluir pelo menos um historiador na assessoria da comissão. Não pode ser só uma comissão de notáveis, com reputação ilibada e conhecimento jurídico. Tem que se levar em conta questões técnicas. Se procuramos a verdade, temos que ter que pessoas qualificadas para chegar a ela.