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segunda-feira, 2 de junho de 2014

"OU SE APRENDE COM O PASSADO OU SE SOFRE NO FUTURO" JCN

"A SABEDORIA NÃO PRESCREVE.  ASSIM COMO A VERDADE É ETERNA  A HISTÓRIA DE UM PAÍS NÃO PODE SER SUBSIITUIDA POR ESTÓRIAS IDEOLÓGICAS"
José Conegundes Nascimento


A sociedade civil
Roberto Campos
18/04/1999


Se há um termo que tem sido estropiado por usos e abusos é "sociedade civil". Antes de servir de bandeira para rebeldia da turma do "si hay gobierno, soy contra", ele teve uma história curiosa. Muita gente o associa, por via de Marx, a Hegel. Mas quem primeiro falou nisso foi um inglês chamado Adam Ferguson, em 1767, no seu "Ensaio Sobre a História da Sociedade Civil". Não é uma peça moderna. No estilo moralístico da época, discorre sobre as virtudes do homem em sociedade. A sociedade civil, tal como ele a entende, é o oposto do indivíduo isolado, este mais ou menos como os animais brutos. Naqueles saudosos tempos em que ainda não se falava em etologia animal, sociologia, antropologia e muito menos em psicanálise, era assim que parecia: "Ele (o homem) goza a sua felicidade dentro de certas e determinadas condições, e tanto como um indivíduo isolado ou como membro da sociedade civil deve seguir um curso específico para colher as vantagens da sua natureza". De certo modo, sociedade civil era a condição do homem da cidade, que está na origem da palavra "cidadão". Inocente Ferguson!Foi Hegel quem inventou um outro sentido que se prestou a fácil desvirtuamento. A monarquia prussiana, da qual era súdito apreciado, se sentia (como todas as monarquias absolutas) justificada por si mesma, de modo que o governo aparecia, por assim dizer, como algo paralelo à sociedade "civil", e, de certo modo, dela independente, uma vez que não tirava dela a sua legitimação. Mas, naturalmente, há tantos Hegels quanto cabeças que o interpretem. Um marxista francês muito famoso há três décadas, hoje meio esquecido, L. Althusser, em "Por Marx" (1962), chega à beira da caricatura, construindo como idéia hegeliana, em cada sociedade, duas sociedades embutidas: a das "necessidades" (ou da economia), que seria a sociedade civil, e a "sociedade política", ou o Estado, com tudo o que este compreendia: religião, filosofia, ideologia, em suma, a consciência que cada época tem de si mesma. Ou seja, vida material, de um lado, e espiritual, de outro. Só que, no pensar de Hegel, a primeira dessas sociedades seria um "truque da Razão", e a segunda delas é que constituiria a condição de possibilidade daquela. Marx, é claro, como todo o mundo sabe, achou que podia inverter a equação e fazer do lado material das coisas a essência do lado político-ideológico.Hoje, estamos cansados desses exercícios e não achamos que as suas obscuridades e confusões justifiquem as pessoas se matarem umas às outras (exceto, é claro, para os que sentem grande apetite de poder). O caminho começa com generalidades e absolutos e termina no gulag e no "paredón", da mesma forma que séculos atrás terminava em fortuna e fogueiras. Foi uma longa andança da humanidade até as idéias democráticas modernas, que surgem com a autonomia do indivíduo diante da Coroa e com os primeiros pensadores liberais do Século 17, que na Inglaterra inverteram essa maneira de ver.Hoje, a expressão "sociedade civil" começou a servir a grupos e a finalidades em relação aos quais manter alguma desconfiança é prudência cautelar. Diversas variedades de esquerdas e adjacências passaram a usar a expressão para subentender uma separação intratável entre o "governo" e aquilo que chamam de "sociedade civil" _ e, portanto, para contrabandear a noção, que fica implícita, mas sempre presente, da ilegitimidade básica de todas as autoridades e leis que não sejam as deles mesmos. Mas, parodiando o Evangelho, muitos são os chamados e poucos os escolhidos. Liberais americanos, por exemplo, vêm usando o termo no sentido de civilidade, tolerância _ boas maneiras, em suma, politicamente corretas...Obviamente, uma sociedade "civilizada" (no sentido de nossos valores ocidentais) pressupõe "civilidade", isto é, a aceitação de regras de convívio que acolham a grande maioria das pessoas. E também tolerância, isto é, o reconhecimento de que as pessoas são diferentes e devem ter o direito de sê-lo, enquanto não se metam a perturbar a vida alheia. A linha que separa o lícito é quase sempre tênue e muitas vezes difícil de perceber com nitidez. Já li, certa vez, na Europa, um cidadão de maneiras muito polidas justificando a pedofilia, em nome, se bem me lembro, do amor. E, de vez em quando, na "defesa dos direitos dos animais", alguns amigos das bestas chegam ao extremo de colocar bombas ou ameaçar de morte os pesquisadores de laboratórios que manipulam ratos em macacos."Direitos humanos" é uma bonita expressão. Mas, por trás dela, há de tudo, começando por vocações autoritárias, exibicionistas, malandros, carreiristas e toda a fauna dos deslumbrados, até a variedade doméstica comum dos bobos. Sem dúvida, há um espaço válido para entidades humanitárias internacionais, como a Cruz Vermelha ou o Crescente Vermelho Islâmico. E para inumeráveis associações não-lucrativas, culturais, educacionais e por aí afora. Mas será que isso cobre as ONGs que querem disputar um papel de comando na nossa governança, a ponto de FHC ter criado o neologismo das organizações "neo-estatais"? Menos de 15% das ONGs registradas no Conselho Econômico e Social da ONU (Organização das Nações Unidas) provêm de países em desenvolvimento (que já representam uns 4/5 da população da Terra). Ou seja, os Greenpeace da vida que vêm meter o bedelho em nosso país promovendo ações contra a soja transgênica (um assunto exclusivamente nosso) estão representados em excesso, no mundo, na proporção de mais de 30 para 1! Viva a nossa Constituição de 88...Em outras partes, está se começando a debater mais seriamente até que ponto deixar ir a pretensão dessas "organizações informais" _ cuja única legitimidade é dada pela sua exclusiva autolegitimação, como quem diz: eu tenho o direito de me meter na sua vida. No Brasil, os resíduos do subdesenvolvimento político ainda intoxicam. Tem gente achando que essa história de ONG parece até extragaláctica. Mais uns 10 ou 20 anos e provavelmente o nosso Congresso já estará debatendo o excesso de intromissões da turma, por meio de uma CPI das ONGs.O surto de organizações intermediárias entre o governo e o cidadão, por iniciativa associativa destes, foi saudado por Tocqueville no século passado como um dos "building blocks" fundamentais da democracia americana. A iniciativa da cidadania de um lado aliviava as tarefas do governo e de outro diminuía o centralismo burocrático, às vezes despótico, dos modelos europeus de governo.As ONGs têm uma função útil a desempenhar na medida em que desenvolvam o aspecto associativo e mobilizem os cidadãos para substituírem os governos, que têm um excedente de tarefas e um déficit de recursos e de capacidade gerencial. Mas para isso são necessárias duas condições. Primeiro, que as ONGs não sejam meras caçadoras de verbas públicas. Segundo, que não se intoxiquem com fanatismos setoriais, coisa que vem acontecendo com frequência nos movimentos ambientalistas, que entronizam a tal ponto as plantas e animais que o homem passa a ser um detalhe incômodo. Viés paralelo se encontra em algumas ONGs de defesa dos direitos humanos, que morrem de pena das 3.000 vítimas de Pinochet e silenciam sepulcralmente sobre os milhares de fuzilados e 2 milhões de exilados da ditadura de Fidel Castro.


Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).