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domingo, 9 de setembro de 2007

Preso na própria armadilha

O Estado de S. Paulo

Editorial

Teria sido adequada, não fosse por uma falha grave, a primeira reação pública do presidente Lula à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de processar três ex-ministros do seu primeiro governo, quatro deputados do seu partido, além do publicitário que fabricou o bem-sucedido "Lulinha, paz e amor" - entre os 40 réus do mensalão. "As instituições estão funcionando", afirmou ele, na passagem positiva das suas avaliações. "Houve um pedido de indiciamento, houve a aceitação e, até agora, ninguém foi inocentado e ninguém foi culpado. Agora (…) quem tiver culpa pagará o preço, quem não tiver culpa será inocentado. E quem ganhará com isso será a democracia brasileira." O melhor nesses comentários está em exprimirem a louvável expectativa de que o STF não cometerá a injustiça de inocentar culpados e cobrar dos inocentes um preço indevido.Ficasse ele nisso, mereceria aplausos pelo comedimento e o respeito ao Judiciário - o que se espera de um chefe de governo democrata. Mas eis que falou mais alto a sua compulsão para se desforrar da oposição, das elites e da mídia pelo que acha que o fizeram passar, de má-fé, durante o transe do mensalão. (Como se o capitão do seu time, José Dirceu, nunca tivesse afirmado que tudo o que faz é por ordem do presidente e que nada faz à sua revelia.)Anteontem, não pela primeira vez, mas nunca, decerto, em momento tão inoportuno, ele desceu metaforicamente do pódio do Planalto para subir ao palanque onde exercita a sua jactância. "Tentaram, na verdade, me atingir", lembrou. "E 61% do povo deu a resposta na eleição do ano passado." Ele quis dizer, obviamente, que foi absolvido nas urnas, tidas implicitamente como a suprema instância de julgamento dos políticos acusados de malfeitorias. Essa tentativa de transformar postos de votação em tribunais populares - portadores, por definição, da verdade última sobre o comportamento ético dos eleitos - constitui uma rematada deturpação dos fatos. Se há uma situação em que a voz do povo muitas vezes não é nem sombra do que seria a voz de Deus, é precisamente essa. A história brasileira e do mundo democrático inteiro está atulhada de exemplos de corruptos notórios que se beneficiaram da discutível propriedade que teria o voto de lavar mais branco as piores reputações. Menos de um ano atrás, políticos tachados de mensaleiros ou sanguessugas, de uma penca de partidos, entre os quais o PT, não se reelegeram confortavelmente? Dos "300 picaretas" que certa vez Lula identificou no Congresso, muitos foram liberados pelo eleitor, desinformado ou indiferente, a continuar fazendo picaretagens. E o que dizer do símbolo da impunidade no Brasil, o ex-prefeito Paulo Maluf? Em outubro último, 740 mil eleitores paulistas tornaram-no o mais votado deputado federal do País. Se Lula não pensasse com o fígado, mas com a cabeça, escaparia da armadilha que a sua famosa incontinência verbal montou para ele, fazendo-o se incluir no time dos enodoados que foram "absolvidos" nas urnas. Teria sido mais simples, mais veraz e mais adequado à circunstância se dissesse que "tentaram, na verdade, me atingir, mas meu nome não consta da denúncia do procurador-geral que a mídia não se cansou de elogiar". A desastrada invocação de Lula foi também uma espécie de senha para a companheirada extremar o argumento.Quem se destacou na radicalização foi o secretário-geral da Presidência, ministro Luiz Dulci, responsável pelos discursos que o chefe ou não tem paciência de ler até o fim ou descarta sem mais aquela. Começou afirmando que a decisão foi sobre os autores (dos crimes denunciados) e não havia nada sobre o governo - como se os principais "autores" não fossem ex-ministros do governo. E prosseguiu repetindo o argumento de Lula: "Quem julga na democracia é o povo soberano, e o povo soberano reelegeu consagradoramente o presidente Lula." Ele reafirmou que o 3º Congresso do PT, que começa hoje, passará ao largo do mensalão, porque o partido não aceita ser pautado pela oposição. Na realidade, o que o partido não aceita, salvo afônicas exceções, é olhar nos olhos a verdade de suas ações delituosas que levaram ao banco dos réus, entre outros, dois dos seus ex-presidentes, José Dirceu e José Genoino, por corrupção ativa e formação de quadrilha.