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terça-feira, 24 de abril de 2007

A incerteza nos julgamentos

Jarbas Passarinho
Foi ministro de Estado, governador e senador

Um filósofo cético negava-se a julgar seus coevos porque dizia que o homem e a natureza se confundem, daí ser discutível formular leis do comportamento com base no pequeno fragmento da natureza que é o homem. Na Bíblia o conselho é impositivo: “Não julgueis para não serdes julgados e, com a medida com que julgardes, assim sereis medidos”. O Padre Vieira, no sermão da Segundo Domingo do Advento, agravou o conselho bíblico: “Antes quisera ver-me acusado do demônio do que julgado pelos homens, porque os demônios acusam apenas as obras e as palavras, ao passo que o homem julga e condena até os mais íntimos pensamentos, embora não os possa conhecer. No juízo de Deus nossas boas obras defendem-nos, no juízo dos homens o maior inimigo que temos são as nossas boas obras”.
Entendo a amargura de Vieira quando trata dos homens em sentido geral. Já Rui, ao relacionar o homem habilitado a julgar, diz que o juiz previne-se contra aquilo que desonra sua conduta judicante, pois o juiz que não tem a consciência serena, que sentencia sob influxo da paixão ou do ódio, ou ainda pela amizade pessoal ou interesse político, deslustra a dignidade do julgador e é o pior dos juízes.
No primeiro caso, o do julgamento do homem comum, “o pequeno fragmento da natureza”, capaz de todas as grandezas e de todas as misérias, faz-me lembrar a revolta com que vi, na campanha eleitoral de 2002, um julgamento profundamente infeliz do então candidato Lula, entrevistado por Boris Casoy. O jornalista perguntou-lhe o que pensava de uma crítica que lhe fizera, em jornal de Miami, o exilado cubano Armando Valadares, devido à sua devoção ao ditador Fidel Castro. Lula, claramente irritado, disparou seu menosprezo : “É um picareta”.
Estou certo de que não sabia quem era Valadares, companheiro, muito jovem, de Fidel na guerrilha de Sierra Maestra. Católico praticante, quando os comunistas começaram a conquistar Fidel, iam às mesas de trabalho das estatais e colocavam adesivo com esses dizeres: “Se Fidel é comunista, eu também sou”, Valadares não permitiu o adesivo em sua mesa. Dias depois era preso, acusado de contra-revolucionário. Foram 20 anos nos diversos cárceres de Cuba, sob tortura permanente, sevícias, simulações de fuzilamento, práticas de humilhações como obrigação de desentupir com as mãos latrinas transbordantes de fezes, e as restrições alimentícias que provocaram a subnutrição.
Régis Debray, assessor do presidente socialista François Mitterrand, conheceu a verdadeira situação de Valadares, condoeu-se e obteve, de Mitterrand, um pedido a Fidel para libertar o preso. Passou ainda meses em cadeira de rodas, tratando-se e nutrindo-se para poder ser libertado andando normalmente até o aeroporto. Escreveu um livro comovedor sobre as crueldades a que foi submetido e intitulou-o Contra toda a esperança. Esse é o “picareta” no julgamento de Lula, que liderou as grandes greves do ABC, repudiou a sentença do Tribunal do Trabalho de São Paulo numa disputa entre metalúrgicos e patrões, pelo que, em cumprimento da lei, já não vigente o AI-5 e todas as medidas de exceção, foi hóspede do delegado Romeu Tuma numa prisão que, comparada com o que sofreu Valadares, seria um hotel de luxo. Solto, foi exonerado da montadora em que era torneiro-mecânico competente.
Hoje o presidente Lula recebe uma indenização por isso. Presidente do Senado, conheci-o, quando o recebi, acompanhado de dois outros líderes sindicais, em audiência cordial. Dela tenho a foto. Fomos, depois, colegas no Congresso Nacional, na Constituinte de 1987/88. Tive provas de apreço que estão publicadas e dele guardei a imagem de um católico “caótico” ou não, como o chamou um cardeal, que jamais ofenderia um trabalhador. Se soubesse do sofrimento cruel a que Valadares foi submetido nas prisões, condenado por delito de consciência, ao resistir a acompanhar a adesão de Fidel ao comunismo. A natureza conciliadora de Lula, presidente que perdoa mesmo os que o traíram, jamais lhe faria chamar de “picareta” a saga de um trabalhador torturado durante 20 anos, católico que chegou a perder a esperança contra a esperança, o que não ocorreu a Abraão, pai aos 90 anos, pela graça de Deus.
A classificação pejorativa cabe, sim, aos dirigentes do PT que se tornaram uma quadrilha a locupletar-se à custa do dinheiro público, assim como se revelam, agora, na Operação Hurricane, juízes venais, desembargadores, ministro de Tribunal Superior de Justiça, delegados da Polícia Federal, advogados e empresários corruptos. Esses, sim, são piores que “picaretas”.


Correio Braziliense – 24 abr 2007