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segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

KIRCHNER, APENA UM EQUIVOCO ELEITORAL. jn

PANORAMA POLÍTICO

Política e sociedade, quase descontroladas


Eduardo van der Kooy

Cristina Kirchner não está bem. A afirmação não se refere ao seu estado de saúde, recuperada, segundo os médicos, depois da doença e do repouso. 

Refere-se, mais do que nada, à sua bússola política, que não parece registrar as mudanças detonadas por aquela severa derrota eleitoral de outubro – e que continuarão detonando.
Algumas decisões da presidente induziram, no começo, a certa confusão.

A demissão do secretário de Comercio Interior, Guillermo Moreno, a chegada de Jorge Capitanich à Chefia de Gabinete (Casa Civil) e a unificação do timão econômico nas mãos de Axel Kicillof, fizeram pensar em um novo tempo. 
O acordo com a Repsol pela expropriação da YPF ajudou a dar algo de consistência a essa impressão. Mas com o passar dos dias, tudo pareceu ser apenas uma miragem. 

Exceto o pacto com a empresa petroleira da Espanha e um estilo de gestão em geral mais amável, não houve ainda respostas à infinidade de demandas que envolveram o veredicto das urnas.

As poucas pessoas que têm acesso à intimidade de Cristina informam, no entanto, sobre a existência de uma mudança que não transpareceu. A presidente teria decidido traçar alguma fronteira entre sua vida pessoal e o poder e a política. 

Até sua arritmia ter sido detectada e sua cabeça operada, tudo se misturava com tudo. 
Essa divisão, aparentemente saudável, encontraria um problema: a presidente delegou tarefas administrativas e políticas, mas nenhuma decisão poderia ser adotada sem o respeito, total, à sua opinião. 
Esse não parece ser um obstáculo menor para uma transição que, depois das eleições legislativas de outubro, adquiriu um ritmo frenético.

Todas as decisões deveriam passar pelo seu filtro. As importantes e as outras. Ficou clara, por exemplo, a disfunção do governo quando acendeu-se em Córdoba o primeiro pavio das rebeliões policiais. 

Capitanich disse uma coisa – que a segurança era responsabilidade só das províncias – e o secretário de Segurança, Sergio Berni disse outra, ao anunciar o envio de “gendarmes” (polícia militarizada) para socorrer o governador José de la Sota. 

Finalmente as forças de segurança foram disseminadas em quase todo o país, quando os conflitos policiais começaram a proliferar.

Exército 
A presidente está empenhada em conseguir que o Senado aprove a promoção do chefe do Exército, general César Milani, questionado por sua atuação durante a ditadura. Ela forçou o apoio de senadores reticentes a esta nomeação. 


Ela também desejava retirar o promotor José María Campagnoli do caminho das suas investigações (sobre a rota do dinheiro). Esse trabalho foi feito pela procuradora-geral, Alejandra Gils Carbó. A explicação mais ouvida é a que a suspensão do promotor teria obedecido à sua atuação no caso do empresário K Lázaro Báez. 

Mas seria outra coisa: Campagnoli tinha em mãos outras três investigações que complicariam líderes kirchneristas de peso.

Na semana passada, Cristina foi avisada da necessidade de resolver a designação do novo Defensor do Povo da Nação. 
O mandato do atual defensor, o adjunto Anselmo Sella, vence no fim deste mês. A presidente propôs Juan Manuel Abal Medina, mas a oposição, que integra o partido UCR, o recusou. Para aprová-lo o kirchnerismo precisa de dois terços dos votos da Câmara e do Senado. Tarefa quase impossível. 

“Não vou me preocupar com isso. O que vale é a minha saúde. Que fique vazio”, respondeu a mandatária antes de viajar para El Calafate, na Patagônia.

O kirchnerismo nunca deu muita importância aos órgãos de controle. A Defensoria do Povo é um órgão de controle, depende do Congresso, segundo indica a Constituição, mas desde 2009 – quando Eduardo Mondino se afastou – virou apenas um ente vazio dominado pelos K. 
O dilema para a difícil transição não estaria, de nenhuma maneira, nessa vacância. Estaria, na verdade, na vontade de Cristina de continuar fazendo só o que ela quer. 

Sem se interessar ou sem conhecer profundamente cada realidade. De outra forma, seria difícil entender sua animação, dançando em um palco da Plaza de Mayo, na comemoração dos 30 anos da democracia, enquanto o país era atravessado por rebeliões policiais, saques, violência criminal e mortes. Vários ministros – apesar de nunca confessarem – lamentaram a falta de pudor presidencial.
A presidente não teria tomado consciência total sobre o que ocorreu durante a última semana. Para ela, as rebeliões policiais e os excessos sociais teriam sido unicamente resultado de uma imprecisa tentativa desestabilizadora. 
Essa ideia banal pulula também nas cabeças do seu filho, Máximo Kirchner, e do secretário Legal e Técnico, Carlos Zannini. 

Mas alguém contribuiu com uma ideia mais elaborada: surgiu do juiz da Corte Suprema, Raúl Zaffaroni, o slogan da necessária suposta reinserção policial na democracia. Diagnóstico equívoco e tardio. 

As Polícias teriam sofrido nestes anos, como o conjunto da sociedade, um processo de degradação interno que levou à ruptura de princípios morais básicos. Essa ruptura não estaria demonstrada apenas no abandono da proteção da segurança coletiva, mas também na participação direta ou indireta nos episódios de violência e nos saques. 
Foi evidente e patético em todas as províncias. Como se surpreender, diante desse quadro, com a filtração do tráfico de drogas na medula de muitas forças policiais? Só a longa desatenção e a ineficácia do governo poderiam explicá-la.

Os casos que induzem a pensar em um perigoso momento de decomposição social são incontáveis. Os milhares de assaltos a mão armada em casas particulares enquanto ocorriam os saques. A professora que em Córdoba viu seus dois melhores alunos, porta-bandeiras da escola, participando dos roubos. 

Moradores que roubavam comerciantes do bairro onde fazem suas compras diariamente. Dirigentes políticos que participaram da organização dos saques, como aconteceu nos bairros periféricos e muito pobres de Tucumán, com militantes do governador José Alperovich. 
Armas 

A quantidade assombrosa de armas que circulou entre atacantes e atacados. Uma ONG dedicada ao assunto estima que existam mais de 4,5 milhões de armas circulando (no país). Somente pouco mais de 10% possui registro legal.
Apesar de tudo, Cristina continua apregoando seu modelo de inclusão. Mas suas palavras se desfazem sob o ardor da realidade. Como parecem se desfazer também os ensaios políticos. 

Sua remoçada equipe ministerial perdeu grande parte do vigor que teve há pouco mais de duas semanas, quando estreou. Capitanich foi atingido pela crise policial. Os vaivéns, por exigência de Cristina, foram muitos. 

E o Chaco, a província de Capitanich, também explodiu. Foi com Tucumán, o território com mais mortes no país (naqueles dias de turbulência, na primeira semana de dezembro). 

O surgimento do chefe de Gabinete, há apenas 25 dias, parecia uma manobra hábil. A decisão da presidente apontava a homogeneizar o velho pejotismo (Partido Justicilista) para apoiá-la, isolando as pretensões sucessórias do governador de Buenos Aires, Daniel Scioli, e projetando a imagem (de Capitanich no cenário político). Tudo teria ficado em veremos. Ou melhor, percebe-se um claro retrocesso.

Os líderes provinciais, inclusive os mais fortes, foram colocados em xeque.  Esses mandatários começam a se perguntar como chegarão em 2015 guiados por Cristina.

Talvez o pior para eles não tenha chegado ainda. Os aumentos salariais outorgados para frear os protestos policiais – e as reivindicações que chegarão de funcionários estatais e professores – tornariam o déficit fiscal insustentável para o governo. 
Ajuste 


O déficit poderia atingir até 6 pontos do PIB. Por cada peso que arrecada, o governo está gastando um peso e meio. Capitanich estaria pensando em um ajuste durante o verão, mas precisa conversar com o ministro da Economia, Axel Kicillof. E aguardar a sentença de Cristina. 

Por enquanto, Kicillof está preocupado com a drenagem de divisas. Sua viagem à China, na última semana, nesse aspecto, teria tido resultados pouco prometedores. Os chineses não são benfeitores: colocam duríssimas condições para outorgar empréstimos ou financiar projetos. 

A construção de duas represas na província de Santa Cruz teria sido adiada. O presidente do Equador, Rafael Correa, conhece muito bem essa severidade chinesa.
Moreno 
Quando voltou, Kicillof teria encontrado outra novidade ingrata. Seu amigo e secretário de Comércio, Augusto Costa, lhe informou sobre a liberação de importações, em vários setores, assinada por Moreno antes da despedida. Isso significaria novas perdas de dólares. O Ministro da Economia também ficou sabendo da última frase espalhada por Moreno em toda a secretaria quando partiu: “Esses moleques são uns traidores”, disse.

A agremiação política La Cámpora quis prestar-lhe uma homenagem, mas não foi possível. Entre esses jovens explodiu a discórdia por causa do pacto pouco claro com o macrismo na “Legislatura portenha” (Câmara de Vereadores) para aprovar várias leis, dentre elas uma isenção impositiva para o jogo que beneficia o empresário K Cristóbal López. 

Escutaram-se recriminações contra Juan Cabandié e Andrés Larroque (que são da La Campora). Surgiram rupturas com o Movimiento Evita e a piqueteira Milagro Sal, da província de Jujuy. 
Talvez sejam apenas as primeiras pinturas de uma debandada previsível.