RETROCESSO À VISTA
Autor: Ferreira Gullar
O FIM DA utopia marxista, que apostava na derrota do capitalismo, deu
lugar, na América Latina, ao neopopulismo que, fazendo-se passar por
socialista, explora, em vez da contradição classe operária versus
burguesia, a oposição entre pobres e ricos. Se, no caso anterior, os
sindicatos funcionavam como instrumento de organização e mobilização do
operariado para a tomada revolucionária do poder, agora constituem uma
burocracia de neo-pelegos, que passaram a ocupar posições estratégicas no
aparelho de Estado e na máquina política.
Assim, pressionam o governo e os patrões para que façam pequenas concessões
aos trabalhadores, com a condição de mantê-los quietos, enquanto eles, os
neo-pelegos, enriquecem a se fortalecem politicamente. A ascensão de Lula à
Presidência da República foi resultado desse jogo e, ao mesmo tempo, um
salto qualitativo para a elite sindicalista.
As consequências disso para a democracia brasileira podem ser as mais
desastrosas, como procurou mostrar Fernando Henrique Cardoso, num artigo
recente, intitulado "Para onde vamos?".
O neopopulismo nada tem de revolucionário, como alardeia Hugo Chávez,
travestido de líder esquerdista, mas que, na verdade, se apoia no voto do
venezuelano pobre. Sustentado pelos vultosos rendimentos do petróleo,
mantém programas sociais assistencialistas, que lhe garantem vasta
popularidade.
Aparece, diante do povão desinformado, como seu providencial protetor, que
o defende de um lobo mau chamado Estados Unidos. Seu verdadeiro projeto é
manter-se indefinidamente no poder e, para consegui-lo, fez o Congresso
aprovar a reeleição ilimitada.
Lula tentou seguir o mesmo caminho, mas teve sua pretensão rejeitada numa
pesquisa de opinião. Precavido, mudou de tática e terminou adotando a
candidatura de Dilma como a solução possível.
Invenção sua, se eleita, ela terá que fazer dele seu sucessor em 2014, e,
assim, caso isso ocorra, teríamos mais oito anos de Lula na Presidência da
República, o que somaria, no total, 20 anos de lulismo. Ou mais, muito
mais, porque pode não parar aí, já que, àquela altura, as bases do
neo-peleguismo e do neopopulismo estariam amplamente assentadas em todo o
país.
A ameaça é que, se já agora ele se rebela contra a ação fiscalizadora do
Tribunal de Contas da União e pretende calar a imprensa, ou seja, não
admite que ninguém critique ou cerceie suas decisões de governo, imaginem o
que não fará durante tantos anos no poder.
A história tanto anda para frente como pode andar para trás. O propósito
de, chegado ao poder, não sair mais, faz parte da ideologia petista, como
deixou claro José Dirceu, em visita a Madri, logo após a posse de Lula, em
2003, ao afirmar que o projeto deles era ficar 20 anos no poder. Sim,
porque, ao contrário dos outros partidos "burgueses", o partido dito
revolucionário vem para salvar o povo e mudar o rumo da história. Logo, não
pode se submeter às regras democráticas da alternância no poder. Se é
verdade que, a esta altura, o petismo já abriu mão do revolucionarismo, não
admite perder as posições conquistadas.
Lula, muito esperto, logo compreendeu que o Brasil não é a Venezuela. Sabe
que, embora tenha maioria no Congresso, este jamais lhe concederia um
terceiro mandato e muito menos a possibilidade de reeleição ilimitada. Por
isso, adotou a tática de conseguir um mandato tampão para Dilma, enquanto,
às carreiras, procura implantar o PAC e aparecer, diante da nação, como um
presidente empreendedor, que visa elevar o país à condição de grande
potência. Assim age Chávez e assim agiu nossa ditadura militar.
A fórmula é sempre aquela: inimigo dos poderosos e amigo dos pobres,
defensor dos negros e mulatos, inimigo dos brancos de olhos azuis. Isso
transparece, a todo momento, em suas declarações e discursos. Não faz muito
tempo, falando aos catadores de lixo, criticou os ricos que,
deliberadamente, sujam a cidade para que os lixeiros, humilhados por eles,
a limpem.
É um presidente da República que, sem qualquer escrúpulo, faz questão de
instigar ressentimentos e conflitos entre os cidadãos, jogar uns contra os
outros. Isso no discurso, porque, de fato, usa a máquina do Estado para
favorecer grandes empresas nacionais e estrangeiras.
O artigo de Fernando Henrique Cardoso chamou atenção para o perigo que o
país corre. Em vez de desautorizá-lo, os formadores de opinião deveriam
preocupar-se com o interesse maior da sociedade. É de se esperar, também,
que Serra e Aécio assumam a responsabilidade que lhes cabe.
"Agora não importa o que fizeram de ti,
mas o que você vai fazer com o que fizeram de ti".
Sartre
O artigo de Ferreira Gullar foi publicado na FOLHA Ilustrada em novembro de 2009