Os escândalos de Brasília seriam como os outros ocorridos no Brasil, e da mesma forma documentados, se não houvesse razão adicional e mais profunda: a autonomia do Distrito Federal. Os constituintes de 1988, embalados pela fome de liberdades públicas, depois dos anos ditatoriais, não meditaram o pacto federativo que deu origem à República de 1891. O Brasil é uma união de estados, e o Distrito Federal é a sua sede. Seu território não pertence a um estado em particular, mas ao conjunto da República. Os cidadãos que habitam o Distrito Federal são cidadãos da União, a menos que continuem sendo cidadãos-eleitores de seus estados. A Federação implica dupla cidadania, de facto (nos Estados Unidos, de jure): a dos estados e a da União. O Distrito Federal é município, sob jurisdição da União, com estatuto diferente. Ele deve contar com autonomia administrativa (como Washington), mas não autonomia política. Deve dispor de uma câmara municipal com vereadores, empenhados nos assuntos relativos à urbe, mesmo assim com algumas restrições. A civitas é assunto do todo nacional. Admite-se que Brasília disponha de representação no Parlamento federal, como ocorria com o Rio de Janeiro. Nos Estados Unidos, o Distrito de Colúmbia (onde se localiza a capital Washington), sede da União, elege somente um representante, da mesma forma que Porto Rico e as Ilhas Samoa. Não elege senadores. O prefeito é eleito, juntamente com um conselho municipal, para tratar dos problemas locais.
Pouco a pouco, em Brasília, a partir da Constituição de 88, o poder local foi se arrogando o estatuto de estado. Os vereadores que deviam estar empenhados nos problemas de trânsito e de coleta de esgotos, ao se chamarem “deputados distritais” (o que é absurdo semântico), começaram a legislar para o mundo. A tal ponto chegamos que as secretarias administrativas do governo local se intitulam Secretarias de Estado.
Na Comissão de Estudos Constitucionais, presidida pelo professor Affonso Arinos, em 1986, discutimos esse assunto e fui, juntamente com Hélio Jaguaribe e outros, vencido pelos que defendiam a autonomia. Os mais veementes autonomistas – que ainda estão vivos e atuantes – foram intelectuais e juristas brasilienses, talvez com a esperança de que pudessem influir nos destinos políticos da cidade. Um deles, o professor Cristovam Buarque, chegou a eleger-se governador e é senador, mas não conseguiu reeleger-se para o Palácio dos Buritis. A realidade mostrou-lhe que, sem o mínimo de sedimentação histórica e política, é difícil formar cidadãos. A periferia de Brasília, constituída em sua maioria de pessoas recém-chegadas do interior do Brasil, com pouca instrução, vota em demagogos e aventureiros. Um dos grandes defensores da autonomia de Brasília – e talvez tenha sido o mais influente deles sobre a Assembleia Constituinte, ao convencer Ulysses Guimarães de sua tese – foi José Aparecido de Oliveira, que, na época, governava o Distrito Federal. Ele estava, como outros, imbuído de boas intenções democráticas, mas não amparado nas razões federativas do Estado Nacional.
O artigo 3º da Constituição de 1891 define muito bem o que deveria ser o Distrito Federal: “Fica pertencendo à União, no planalto central da República, uma zona de 14.400 quilômetros quadrados, que será oportunamente demarcada para nela estabelecer-se a futura capital federal”.
Estamos diante de um nó constitucional em Brasília. Na hipótese do afastamento do governador e do vice-governador, como se admite, o governo será entregue a um deputado distrital qualquer, já que o atual presidente da Câmara foi filmado colocando dinheiro na meia. Se o fato houvesse ocorrido em algum estado, seria o caso de intervenção federal, a fim de que as eleições do ano próximo se desenvolvessem normalmente. Mas que remédio jurídico-constitucional pode ser adotado, quando o Distrito é “federal”, ou seja, pertence à própria União?
Trata-se de uma aporia, entre as muitas de nosso tempo.