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terça-feira, 3 de junho de 2008

Qual cultura? (Intelectuais II)

Qual cultura? (Intelectuais II)


Márcia Denser*

Como é que se pode perguntar onde foram parar os intelectuais nos últimos vinte anos se, de lá para cá, destruiu-se a base material – logo humano-ideológica – para produzir cultura? se não há projeto de nação? se não há projeto de vida? se não há trabalho nem emprego nem futuro nem esperança para nossa juventude? (profissão:estagiário dos 16 aos 60?) se não há estabilidade e apenas terror do desemprego para os adultos? se tudo que há é aviltamento e negação do real e mais terror para todos indistintamente?

Evidente. Não há nenhuma possibilidade de florescimento cultural legítimo, pois tudo o que “floresce” é o que vegeta à sombra do vulcão.

Porque a presente conjuntura histórica mundial destrói a cultura. Por quê? Porque uma época de verdadeiro brilho cultural é muito diferente disso. Eu sei. Eu estava lá.

Leio as críticas desencantadas de Joca Terron e Miguel do Rosário a respeito de autores franceses e latinos recentes: nem vale à pena tirar uma com a cara dos sujeitos, escritores multifuncionais & respectiva claque (claro, não estamos engolindo nenhum peixe podre e por “nós” me refiro aos nossos jovens autores honestos), o fato de desenvolver eternamente uma crítica pelo negativo vai fodendo a vida da gente, a vida ela própria como um exercício de vacuidade cultural.

Mas esta é apenas uma das razões pelas quais a cultura (ergo a literatura, a cerâmica, a botânica) NÃO PODE DAR PÉ nas atuais circunstâncias, baby.

Maio de 68, toda a MPB, Tom Jobim, o CPC, Zé Celso, os Doces Bárbaros, Milton Nascimento, o Boom Literário de 75, a Revolução Cubana, Celso Furtado e os cepalinos, a Social Democracia Européia, a Nouvelle Vague, Fellini, pensem qualquer coisa, foram produto da Pax Americana de 50 a 80, o keynesianismo, a injeção de grana na Europa e logo após na América Latina.

Constrangido pela História, inadvertidamente o Capital teve que dar uma chance ao homem.
Em São Paulo, nas décadas de 70/80, o poder aquisitivo dos jovens que trabalhavam na mídia, publicidade, jornais, entidades culturais privadas e estatais, incluindo colégios e universidades, era três vezes maior do que hoje. Eu lembro, eu era um deles. Imaginem os salários dos jovens em Berlim ou Amsterdã ou Paris ou Chicago.

Dava par ir toda semana de ponte aérea para o Rio, dava para pagar todos os itens do cardápio do Restaurante Rodeio em Sampa, incluindo a carta de vinhos.

Sem contar a liberdade para escrever e publicar, escrever e montar peças de teatro, filmar, pintar, fotografar, pesquisar, engendrar teses científicas sem constrangimentos nem imperativos ideológico-mercadológico-institucionais que fodem a vida; sem patrulhamento midiático – das entrevistas às colaborações.

E não me falem em anos de chumbo, aquilo foi piquenique de noviças, os anos de chumbo são hoje, aqui, agora, esta noite.

E hoje, nestes cruciais 2008 – se estagnada em milhões de dólares, Hollywood agoniza? Sobretudo Hollywood agoniza?

Retire-se a possibilidade de sobrevivência, a vivência – e seu produto que é a cultura –rapidamente desaparece. E os dividendos decorrentes.

A Sociedade do Espetáculo está morrendo – por falta de Espetáculo. E público.

Porque pessoas inteligentes – intelectuais – sempre haverá no mundo: quem querem enganar? quantos querem enganar? até quando?



PUBLICADO EM:02/06/2008

* A escritora paulistana Márcia Denser publicou, entre outros, Tango Fantasma (1977), O Animal dos Motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), Diana caçadora (1986), Toda Prosa (2002) e Caim (2006). Participou de várias antologias importantes no Brasil e no exterior. Organizou três delas - uma das quais, Contos eróticos femininos, editada na Alemanha. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é pesquisadora de literatura brasileira contemporânea, jornalista e publicitária.

Fonte: Congresso em foco http://congressoemfoco.ig.com.br