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domingo, 8 de novembro de 2009

Ficção barata

Daniel Pereira - Nas Entrelinhas       CORREIO BRASZILIENSE     7/11/09

Referências brasileiras no samba e no rock, Bezerra da Silva e O Rappa incluíram em seus discos uma mesma música sobre os políticos do país. Escrita por Walter Meninão e Pedro Butina, narra as andanças típicas de uma campanha. Diz o seguinte: “Ele subiu o morro sem gravata dizendo que gostava da raça, foi lá na tendinha e bebeu cachaça, e até bagulho fumou. Foi ao meu barracão e lá usou lata de goiabada como prato, eu logo percebi é mais um candidato às próximas eleições”. A letra é simples. Sem floreios nem refinamento. Numa linguagem popular, dá voz a sensações recorrentes no eleitorado.

Por exemplo: governantes e parlamentares só dedicam tempo e atenção à sociedade quanto precisam renovar os mandatos. E aceitam qualquer desafio para ter sucesso nas urnas. Do consagrado beijo em crianças de colo à degustação da buchada de bode — de preferência, com chapéu de sertanejo na cabeça. Tais percepções são um clássico da tradição política nacional. Nesta semana, foram reforçadas devido à inclusão, na pauta da Câmara, da proposta que garante a todos os aposentados e pensionistas do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) o mesmo reajuste aplicado ao salário mínimo.

De forte apelo popular, o assunto se transformou em novela. E, sem fugir à tradição, com cenas explícitas de hipocrisia. Se o projeto for a votação, será aprovado com folga. Não por crença no mérito da iniciativa, mas porque governistas e oposicionistas não querem desagradar a uma fatia importante dos eleitores a menos de um ano das eleições. Na verdade, os principais partidos da base aliada e da oposição são contrários ao texto, apesar de entoarem discursos favoráveis em plenário. Dizem que ele implodirá as contas da Previdência, com um impacto de cerca de R$ 7 bilhões só neste ano.

É por isso que, longe dos holofotes, barram a votação. E fazem de bobos os grupos de aposentados e pensionistas que encheram as galerias e corredores da Câmara nesta semana. Em público, só o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e pequena parte da bancada do PT pedem que a proposta não seja votada. Lula age assim por pelo menos dois motivos. Primeiro, porque não quer ter o ônus político de vetar os reajustes caso sejam aprovados. Segundo, pois pretende anunciar um aumento acima da inflação — mas bem menor do que o sob análise dos deputados — para todos os segurados do INSS em janeiro de 2010, quando tentará eleger como sucessora a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff.

Trata-se de uma característica do presidente. Lula não abre mão de ser o pai de todas as bondades. Exige exclusividade no papel de benfeitor. Missão facilitada, registre-se, por um Congresso rebaixado à mera condição de homologador de decisões emanadas do Planalto.

Inimigos íntimos
PSDB e DEM têm razões parecidas com a dos governistas. Com perspectiva de poder a partir de 2011, reclamam da expansão das despesas correntes na gestão petista. Falam que Lula arma uma bomba de efeito retardado que explodirá no colo de seu sucessor. A aprovação do projeto em tramitação na Câmara agravaria essa armadilha fiscal. Por coerência, tucanos e democratas deveriam conclamar os pares a barrar a proposta. Por que não o fazem? Confiam no veto presidencial, que colocaria freio nos gastos previdenciários e desgastaria os petistas com aposentados e pensionistas. Ou seja, renderia dois dividendos num investimento só. Nada mal.

A dissimulação dos oposicionistas é a mesma de 2006. Naquele ano, foi aprovado um reajuste de 16,67% nos benefícios do INSS. Lula vetou. Apesar de ter poder para derrubar o ato presidencial, o Congresso nunca tentou fazê-lo. No primeiro mandato do petista, tucanos e democratas também conseguiram, num cochilo governista, aprovar uma emenda que quase dobrava o valor do salário mínimo. Minutos depois, após tripudiarem do Planalto, aceitaram rever a decisão, em nome do equilíbrio das contas públicas. Como se vê, não é de hoje que PSDB e DEM adoram um teatro. As duas siglas brincam de incendiar o circo desde que, é claro, a farsa seja desmontada no fim do espetáculo.

Cantada por Bezerra da Silva e o Rappa, a sugestiva Candidato Caô Caô desmascara o político hipócrita. É no fim da música, graças a uma intervenção espiritual: “Fez questão de beber água da chuva, foi lá na macumba e pediu ajuda, bateu cabeça no congá. Deu azar, a entidade que estava incorporada disse esse político é safado, cuidado na hora de votar”. No mundo real, é possível resolver o problema por conta própria. Bastam pequenos gestos. Como acompanhar o debate político não apenas na hora de votar. Ou não protestar só no conforto das manifestações virtuais.

Um pouco mais de participação é fundamental para punir os políticos que atravancam o caminho. Esses, como diria o poeta, passarão. Só depende do empenho do eleitor.