quinta-feira,
18 de setembro de 2014
Por Carlos I. S. Azambuja
Antes de tomar o Poder e, para
tomá-lo, os partidos comunistas e os nazistas utilizam todos os meios da
política. Eles se instalam no jogo político, apesar de eles mesmos, segundo
seus próprios critérios e sua disciplina interna, se colocarem fora do jogo.
Por exemplo, quando o Partido Bolchevique reivindicou a terra para os
camponeses e a paz imediata, não era para se contentar com o êxito dessas duas
reivindicações. Tratava-se de colocar os camponeses e os soldados do seu lado a
fim de lançar o processo revolucionário. Feita a revolução, a terra foi
expropriada e a guerra foi ativamente preparada sem que o partido tivesse visto
nisso qualquer contradição.
Uma vez no Poder, a política do
partido fica mais do que nunca voltada para a destruição do político. As formas
orgânicas da vida social, a família, as classes, os grupos de interesse, os
corpos constituídos, são suprimidos. A partir daí, as pessoas, privadas de todo
direito de associação, de agregação espontânea, de representação, reduzidas à
condição de átomos, são colocadas em um novo enquadramento, o qual se modela
sobre aquele que deveria subsistir se o socialismo existisse como sociedade.
Ele assume, então, a denominação de sovietes, de uniões,
de comunas.
O Partido Nazista imitou sumariamente
a destruição comunista do político. Ele também tomou o Poder escondendo seus
objetivos reais, enganando seus aliados provisórios para, em seguida,
liquidá-los. Ele também criou quadros novos e integrou neles a juventude e as
‘massas’. Destruir imediatamente os velhos quadros não era seu objetivo.
Contentou-se em neutralizá-los e submetê-los. Assim, sobreviveram no nazismo os
empresários, um mercado, juízes e antigos funcionários. A seguir veio a guerra,
que acentuou e acelerou o controle nazista. Não se sabe o que teria acontecido
se ela tivesse sido ganha.
O Führerprinzip foi
uma peça essencial da trama social. Ela se organizava em torno de uma
hierarquia de chefes leais, devotados ao Reich, ligados por um juramento, e
isso até o fundo da escala a partir do chefe supremo, cuja exaltação era
coerente com o espírito do sistema. O Partido Comunista também era
hierarquizado. A originalidade do partido de Lenin residiu no fato de que,
desde a sua fundação, o centro designava à ‘base’ aqueles que deveriam ser
eleitos, de tal modo que a eleição democrática se tornava simplesmente um teste
do poder absoluto do ‘centro’.
É que a consciência gnóstica, o saber
científico fundador do partido, se encontrava teoricamente no organismo
dirigente e se difundia a partir desse ponto para a ‘base’ que, remetendo
o poder para o ‘centro’, manifestava seu progresso na assimilação da doutrina e
da ‘linha’. Dessa forma, viu-se aumentar o culto ao chefe Lenin, o que chegou
ao seu apogeu com Stalin. Trotsky, Zinoviev, Bukharin, Stalin buscavam o mesmo
objetivo: o socialismo, mas seria necessário que um deles fosse o chefe.
Sucederam-se, então, em circuito fechado as traições, prisões e assassinatos. O
culto subsistiu mas, no tempo de Brejnev já demonstrava as suas fraquezas.
Os dois regimes – o nazista e o
comunista – se referem a um passado mítico sobre o qual se modela um futuro
imaginário (...) A idéia de Marx, segundo as palavras de Raymond Aron, era ir
de Rousseau a Rousseau, passando por Saint-Simon, isto é, pelo progresso
técnico e industrial. Já o hitlerismo era voluntarista: apenas a obra
demiúrgica da vontade poderia restaurar a boa selva, em equilíbrio biológico. O
leninismo contava com o automovimento da História para dar à luz a Arcádia
moderna.
O automovimento produz o partido,
instrumento desse parto. O voluntarismo também é exaltado mas, ao mesmo tempo,
ele é exaltado e negado, uma vez que ele – o partido – encarna apenas a
consciência da necessidade.
Entre esse passado fabuloso e esse
futuro ideal, o tempo presente não tem valor próprio (...) O passado próximo é
o inimigo, o presente não conta, tudo fica submetido ao futuro, aos fins
últimos, à utopia.
Os fins ilimitados do nazismo – A política de apaziguamento conduzida por Chamberlain, e em
certa medida a política de divisão seguida por Stalin em 1940, repousavam sobre
a hipótese de que Hitler poderia estar satisfeito com o que já havia obtido,
pois já havia rasgado o Tratado de Versalhes e
‘adquirido’ bastantes ‘terras a Leste’ (...) Tendo reorganizado
a Alemanha, eliminado os inaptos, os judeus, os ‘inferiores’, ele sentiu
necessidade de ir mais longe (...) Fez um pacto com a União Soviética e, em uma
leviandade incompreensível, declarou guerra aos EUA.
Nessa guerra, o nazismo revelou a si
mesmo a sua vocação para exterminar fatia por fatia toda a Humanidade. Na
medida em que o mundo resistia, a polaridade ariano-judia se tornava cada vez
mais evidente. O judeu aparecia aos olhos de Hitler como o indício de
resistência à realização do grande plano, pois tinha corrompido o mundo
inteiro, conspurcado tudo, ‘enjudeusado’ tudo. Por isso, era a totalidade
da humanidade que deveria ser purificada. Exterminada, portanto.
As ordens de aniquilamento dadas por
Hitler, em 18 e 19 de março de 1945, não visavam uma luta final heróica (...)
Para uma luta desse tipo, pouco adiantava colocar centenas de milhares de
alemães no caminho da morte, nem fazer destruir tudo o que poderia servir à
mais humilde das sobrevivências. Esse último genocídio de Hitler, agora voltado
contra a própria Alemanha, tinha como único objetivo punir os alemães por sua
recusa em agir como voluntários na direção de uma luta final heróica, no
desempenho do papel que Hitler lhes tinha atribuído. Aos olhos de Hitler, isso
constituía um crime passível de pena de morte. Um povo que não assume o papel
que lhe era destinado deve morrer (1).
Hitler se recusou a construir ‘o
nazismo em um só país’ e, para isso, os nazistas praticaram a ‘tática do
salame’, dado que cada ‘raça’, antes poupada, via em seguida chegar a sua vez.
Todavia, rapidamente tudo isso desembocou em um massacre geral. Eles não
poderiam, como teria feito Stalin, prometer a independência à Ucrânia,
dispostos a acertar suas contas com ela após a vitória. Foi necessário que eles
tratassem de exterminá-la imediatamente, o que levou os ucranianos a ficarem
contra eles, nazistas.
Hitler acreditava ser o veículo
genial da Volksgeit e que suas ordens, no início prudentes,
depois insanas, vinham de algo situado acima dele, e essa embriaguez era em
parte comunicada ao seu povo. Por isso a irracionalidade na condução da guerra.
Algumas decisões desejadas por seus generais teriam podido equilibrá-la e, pelo
menos, levá-la a um empate, sob a condição, nunca dada, de que ela se
propusesse fins limitados, falta que acabou, por culpa de Hitler e de seu
wagnerismo doentio, levando-o à derrota.
Os fins ilimitados do comunismo – O projeto comunista é declaradamente total. Ele busca em
extensão a revolução mundial, compreendendo por isso uma mutação radical da
sociedade, da cultura e do próprio ser humano, autorizando a colocação em
prática de meios racionais para obter esses fins alheios à razão. Lenin,
durante a guerra, mostrou-se um sonhador quimérico, sobrepondo às realidades do
mundo as entidades abstratas do capitalismo, do imperialismo, do oportunismo,
do esquerdismo e de muitos outros ‘ismos’ que, em sua opinião, explicavam
tudo. Ele os aplicava tanto à Suiça, como à Alemanha e à Rússia (...)
A tomada do Poder por um partido
comunista é preparada por uma luta puramente política no seio de uma sociedade
normalmente política. É lá que ele treina suas táticas e as coloca em prática
depois da vitória do partido. Aquela – por exemplo – chamada ‘tática do
salame’, que consiste em fazer alianças com forças não-comunistas, de forma que
force o aliado a participar da eliminação dos adversários: primeiro, a ‘extrema
direita’, com a ajuda de toda a esquerda; depois, a fração moderada dessa
esquerda e, assim, sucessivamente, até a última ‘fatia’, que deve submeter-se e
‘fundir-se’ sob pena de ser, por sua vez, eliminada.
Esse profissionalismo, que inclui a
astúcia, a paciência, a racionalidade, quanto ao objetivo buscado, faz a
superioridade do leninismo. Mas trata-se apenas de destruição, pois a
construção é impossível porque esse objetivo é insensato. A prática comunista
não segue uma inspiração estética, mas procede, a cada instante de uma
deliberação ‘científica’. A falsa ciência copiando da verdadeira seu caráter
demonstrativo e seus procedimentos lógicos. Isso apenas torna mais louca a
empresa, mais implacável a decisão e mais difícil a correção, pois a falsa
ciência impede que se constatem os resultados da experiência. Pouco a pouco a
destruição se amplia e se torna total.
Na Rússia ela percorreu seis etapas:
primeiro, a destruição do adversário político: a antiga administração. Isso foi
feito em um piscar de olhos, logo em seguida ao putsch de
outubro de 1917. Depois, a destruição das resistências sociais, reais ou
potenciais: partidos, exército, sindicatos, cooperativas, corpos culturais,
universidades, escolas, academias, Igreja, editoras, imprensa. No entanto, o
partido logo se dá conta de que o socialismo nem sempre existiu como sociedade
livre, auto-regulada e que, assim, a coação é, mais do que nunca, necessária
para fazê-lo surgir.
Mas a doutrina prevê que há apenas
duas realidades – o socialismo e o capitalismo. É nesse momento, então, que a
realidade se confunde com o capitalismo e que é preciso – terceira etapa –
destruir toda a realidade: a aldeia, a família, os restos da educação burguesa,
a língua russa. É preciso estender o controle sobre cada indivíduo tornado
solitário e desarmado pela destruição de seu sistema de vida, levá-lo para um
novo sistema em que será reeducado, recondicionado. Eliminar, enfim, os
inimigos escondidos.
O fracasso da construção do
socialismo no exterior deveu-se ao ambiente externo hostil. Pela sua simples
existência, ele é uma ameaça, quaisquer que sejam as cores desse espectro
hostil: democracia burguesa, social-democracia, fascismo. É preciso então –
quarta etapa – criar em cada país organizações de tipo bolchevique com um
organismo central para coordená-los e adaptá-los a esse modelo central, o Komintern.
Quando, valendo-se das
circunstâncias, o comunismo pôde se estender, as novas zonas agregadas ao
‘campo socialista’ conheceram etapas análogas de destruição. Porém, em
toda a extensão do campo, o partido (pela voz de Stalin) assinala que ‘o
capitalismo está mais forte que nunca’, se infiltra e se estende no próprio
partido, que perde a sua virtude. Cabe então ao líder do partidário, e apenas a
ele, destruir o partido (quinta etapa), para recriar um outro com seus restos.
Stalin fez isso uma vez, não sem imitar Hitler e a sua ‘noite dos longos
punhais’. Ele se preparava para fazê-lo uma segunda vez quando a morte o surpreendeu.
Mao-Tsetung fez duas vezes: no momento do ‘Grande Salto para Frente’ e,
depois, mais nitidamente ainda, na ‘Revolução Cultural’.
Usura e Destruição – Na lógica pura dos dois sistemas levada ao limite está contido o
extermínio de toda a população da Terra. Mas essa lógica não se aplica e não
pode se aplicar até o fim. O princípio do comunismo é o de subordinar tudo à
tomada e conservação do Poder, pois é ao Poder que cabe a responsabilidade de
realizar o projeto. Todavia, as destruições causam um tal desgaste que o poder
do partido corre o risco, não de enfrentar uma revolta geral porque sabe
preveni-la, mas de ver desaparecer a matéria humana sobre a qual ele se exerce.
Foi o que aconteceu no final do ‘comunismo de guerra’: a Rússia se afundava, se
liquefazia quando Lenin decretou a trégua da NEP (...).
Enquanto a revolução não vence em
escala mundial, o mundo exterior, mesmo reduzido a uma ilhota minúscula, é uma
ameaça mortal. Por sua simples existência, ele corre o risco de fazer explodir
a bolha de sabão da ficção socialista. E pouco importa que ele seja
verdadeiramente hostil, como ele só foi uma vez com Hitler, ou que ele queira
apenas a tranqüilidade e o status quo, como desejou o Ocidente
depois da derrota do nazismo. Para manter o mundo real à distância, para
eventualmente destruí-lo, é preciso uma força real à disposição do partido e
esta só pode ser tirada da realidade que ele controla. Ele tem necessidade de
um mínimo de economia real para nutrir a população de um mínimo de tecnologia e
de indústria para equipar o Exército. Subsistem então produtores, técnicos,
cientistas. O partido não pode fazer passar para o outro lado do espelho
tudo o que ele é, pois seria vítima do nada que ele mesmo produziu.
Enfim, a penúltima etapa, a
destruição do próprio partido, colide com os reflexos vitais de sobrevivência.
Depois dos grandes expurgos de Stalin e de Mao, o partido optou por algumas
medidas ‘conservadoras’: não se matam mais comunistas, eles apenas caem em
desgraça. Na Rússia, tudo isso levou à decadência do sistema. O partido
envelheceu, porque a conservação do Poder terminou por se identificar com a
conservação dos postos e dos cargos.
As táticas colocadas em prática em
tempos dramáticos só servem para isso. Brejnev apodreceu lentamente na direção
máxima e o partido se corrompeu, pois embora se dedicando mais aos objetivos do
comunismo, quis, ao mesmo tempo, usufruir o poder e desfrutar das riquezas. Sai
da irrealidade e entra na realidade devastada por sua ação, onde só encontra,
em abundância, mercadorias vulgares, que nem a arte consegue embelezar, como a
vodca, as datchas e as grandes limusines. Quanto ao povo, este
se atola na porção da realidade que lhe foi sempre concedida, se vira como
pode, se desinteressa de um regime que não mais lhe oferece a consolação da
queda dos poderosos e a oportunidade de substituí-los. A degradação geral chega
finalmente a um limite. Quando um piparote aleatório faz desabar o castelo de
cartas, que poderia ter desabado muito antes, descobre-se uma paisagem pós-comunista
mafiosa e semi-indolente, esgotada em sua energia.
Na China, os sobreviventes dos
expurgos maoístas tomaram um caminho diferente. As necessidades do poder puro
se misturaram aos cuidados de desenvolver o poder da China enquanto tal, e o
comunismo morto foi infiltrado pelo nacionalismo vivo. Contemporâneos da
decadência do sovietismo, eles lamentaram ter seguido um modelo errado de
desenvolvimento, enquanto que outras partes do mundo chinês, e em sua
periferia, tinham seguido um outro modelo, melhor. Daí o caráter ambíguo da
China atual, em pleno desenvolvimento, mas sem que o partido abandone seu
projeto e sem que se saiba se esse partido é ainda comunista. As circunstâncias
fizeram com que restasse apenas um regime comunista puro que, até hoje,
preferiu a lógica do auto-aniquilamento: a Coréia do Norte.
Não sabemos como teria evoluído o
nazismo. Ele não chegou ao seu clímax, pois foi derrubado nos primeiros passos
da sua expansão. Ele se voltou para a realidade externa antes de ter terminado
com a sociedade alemã. Enquanto a URSS preferiu a subversão organizada, o
desencorajamento programado do ‘inimigo externo’, e o Exército Vermelho
chegando somente para selar a vitória política, o nazismo recorreu
imediatamente à guerra. A guerra acelerou de modo formidável o programa
nazista, mas suscitando uma resistência mundial rapidamente vitoriosa.
As características do nazismo
permitem eventualmente imaginar que Hitler teria podido chegar a uma paz de
compromisso, que lhe teria deixado uma área vasta e estável. Nesse caso, morto
oFührer, o regime teria se comportado de forma análoga à do regime
leninista.
Na usura e no fracasso dos regimes
totalitários, o fator externo é inegavelmente importante. Ele foi decisivo no
caso da Alemanha nazista, esmagada por vários exércitos. Em contrapartida, o
mundo capitalista nunca constituiu perigo para os regimes comunistas. O nazismo
aumentou a legitimidade do comunismo aos olhos do Ocidente. Durante a época da
chamada ‘Guerra Fria’, a política do roll back foi
imediatamente afastada em favor daquela do containment. Essa opção não
impediu vastas expansões territoriais comunistas na Ásia, na África e até na
América. Finalmente, o único ponto do mundo em que o comunismo foi derrubado da
maneira como o foi o nazismo, por uma invasão maciça devidamente organizada, em
meio, é verdade, a um concerto de protestos de algumas potências não
comunistas, foi a minúscula ilha de Granada.
O texto acima foi extraído das páginas 65 a 80 do livro de Alain Besançon, A
Infelicidade do Século, editora
Betrand Brasil, 2000
Nota:
(1) Sebastien Haffner, Un Certain
Adolf Hitler, Paris, Grasset, 1979
Carlos I. S. Azambuja é Historiador.