TENENTE JOSÉ CONEGUNDES DO NASCIMENTO – UM GRANDE BRASILEIRO, UM VERDADEIRO HERÓI VIVO
-JOSÉ CONEGUNDES DO NASCIMENTO – ASSINANDO SUA DEDICATÓRIA NUM EXEMPLAR DO ORVIL-TENTATIVAS DE TOMADA DO PODER PARA UM ADMIRADOR.
Amigo Nascimento
Adorei sua resposta a famigerada CNV, tão importante que mereceu publicação na Veja: “Não colaboro com o inimigo”.
Parabéns!
SERGIO MAZZA
Quem é o Conegundes?
Quem quiser saber, leia seu currículo no ORVIL. Quem quiser saber realmente quem é o cidadão, o militar, o guerreiro, leia o meu livro sobre o Araguaia (Editora Schoba-). O livro trata apenas dos combates e das missões na selva; não é livro de fritar bolinhos… (se espremer, sai sangue…) e o Cid tem seu valor nele demonstrado. Primeiro, não posso deixar de acrescentar que devo minha vida a ele: a 100 km para dentro da mata a partir de Xambioá, no sentido do Xingú, num combate com os bandidos do grupamento A, fui ferido gravemente. A bandida “Sônia”, ferida, a quem eu afirmara que ficasse quieta e que voltaríamos para salvá-la, sacou do revólver e me acertou, a queima roupa, no rosto e na mão. Acertou o Capitão Luchine (Curió), no braço. Foi apagada em seguida. Grande Sônia, a maior cascavel, a maior caninana que encontrei na mata…queria implantar o regime do Fudel no Brasil… O Cid e três soldados me carregaram numa rede durante uma noite inteira para a vila de São José, onde uma ambulância, combinada via rádio, me aguardava. Está tudo lá no meu livro… Sobre o Cid e o Javali, conto muitas coisas… O Javali, infelizmente, já se foi… não está mais na luta contra estes filhos das putas comunistas aproveitadores, agora atrás de dinheiro das polpudas indenizações…por e-mail, mantenho contato com sua neta, já formada doutora. O Cid, viúvo, vive hoje simplesmente, junto com a família, em Brasília (em endereço agora propositalmente difundido pela comessão da putaria). Esta comessão é criminosa, uma vergonha para uma Nação que despreza seus verdadeiros heróis. Transcrevo alguns trechos do meu livro, escrito em 2004.
“Que outrem possa louvar esforço alheio
Cousa é que costuma e se deseja;
Mas louvar os meus próprios, arreceio
Que louvor tão suspeito mal me esteja;
E, para dizer tudo, temo e creio
Que qualquer longo tempo curto seja;
Mas, pois o mandas, tudo se te deve;
Irei contra o que devo, e serei breve.” – Camões
Meu reconhecimento e minha incomensurável gratidão aos valorosos, leais e abnegados elementos do meu grupo de combate, a quem devo ter sido salvo em plena selva, do contrário teria sangrado até o fim, atingido traiçoeiramente quando tentava prestar socorro a uma guerrilheira que não se rendeu e, por isso, fui obrigado a ferir.
Aos heróicos militares mortos, ainda mais do que aos vivos – impossível citar o nome de todos, meus companheiros, com quem tive a honra e a satisfação de operar nas diversas fases da luta.
Aos “mateiros”, moradores da área, que serviram de guia na mata ao meu grupo de combate, com lealdade e perseverança, levando-nos aos lugares desejados sempre com rapidez e exatidão. Alguns foram, infelizmente, “justiçados” covardemente pelos terroristas.
Desejo reverenciar, in memoriam, o senhor Antonio Pereira, último morador da trilha de Pará da Lama, que mais sofreu, juntamente com a família, as conseqüências de uma luta destituída da mais primária lógica, por inglória, além de fratricida. Hoje, revendo os fatos, não posso deixar de acreditar em destino, principalmente através de sua enorme injustiça. Antonio Pereira, seja em que plano você possa estar na eterna paz de Deus, queira aceitar nosso pedido de mil desculpas pelo mal que inadvertidamente lhe causamos.
Quero agradecer ao historiador Carlos Ilich Santos Azambuja, à escritora Graça Salgueiro, ao escritor Félix Maier, ao Coronel Aloísio de Moura e Souza, ao Coronel José Luiz Sávio Costa, ao Coronel Cláudio Moreira Bento e ao Ternuma, por terem gentilmente autorizado a transcrição de trechos de artigos de sua lavra.
JURAMENTO MILITAR
Incorporando-me ao Exército do Brasil, prometo cumprir rigorosamente as ordens das autoridades a que estiver subordinado, respeitar os superiores hierárquicos, tratar com afeição os irmãos de armas, com bondade os subordinados e dedicar-me inteiramente ao serviço da pátria, cuja honra, integridade e instituições defenderei com o sacrifício da própria vida.
Capítulo 5 – COMBATE COM O GRUPAMENTO A
“Com ânimo forte, se for preciso, enfrenta a morte.
Afronta se lava com fibra de herói de gente brava“.
Incidente com a guerrilheira Lúcia Maria de Sousa, a ”Sônia”.
“Atirar em mulher é muito difícil. Temos que mudar as formas das silhuetas no stand de tiro…”.
Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito Se de humano é matar hûa donzela…
O Boletim Interno nº 15-Reservado, do Gabinete do Ministro do Exército, publicou a ocorrência:
“No dia 24/10, cerca das 17:30 horas, quando foi localizado um aparelho subversivo rural ao Sul da localidade de Metade, próximo à rodovia Transamazônica, no Estado do Pará. A equipe do CIE envolveu-se em combate, tendo sido ferido o Major Licio Augusto Ribeiro Maciel. Em conseqüência, seja providenciado o Atestado de Origem correspondente”.
Transcorria um período de paz na área, final da Operação Sucuri, entrando o mês de outubro de 1973.
Sombra e água fresca, a paz continuava para eles na mata, uma vez que os militares, “derrotados”, tinham se retirado. Para nós, atividade febril: estava começando a fase de caça aos guerrilheiros, que teria de ser final, a dos combates na mata, já que eles não aceitaram a proposta para se entregarem.
O combate com o grupo militar tinha sido encarado pelo comando da guerrilha como pura falta de sorte e considerado como resultado de um grande descuido dos guerrilheiros. Estavam calmos, continuavam confiantes.
A “Sônia” fazia parte de um numeroso grupo, parte do grupamento A comandado por Paulo Rodrigues (depois confirmado, de dezoito elementos). Era o grupamento mais ao Norte da área, o mais perto de Marabá e o mais importante, por englobar o comando militar da guerrilha com seu grupo de segurança, já parcialmente abatido, que era comandado por André Grabois.
Tínhamos informações seguras que estavam se deslocando na área, possivelmente em treinamento. Inicialmente, marchamos para o miolo da área. Depois de vários dias de caminhadas em grandes círculos pelo interior da mata, começamos a encontrar cada vez mais sinais de gente trilhando na mata e rastros nos pátios das casas abandonadas. Até que já tarde de um certo dia, quase escurecendo, deu-se o encontro. Estávamos seguindo um grupo na mata desde cedo, quando encontramos suas pegadas nítidas, frescas, numa trilha bem batida, sinal de que muitos tinham por ali passado recentemente. Fomos atrás e estávamos nos adiantando, avançando, ganhando terreno, eles andavam despreocupados, às vezes se dispersando na mata. Nós marchávamos firme e silenciosamente.
Cerca das 17 horas estávamos entrando em terreno lamacento, mata fechada, próximo a um riacho. Diminuímos o passo. João Pedro achou um coturno marrom escondido numa moita.
O inimigo estava muito próximo, as pegadas na lama já não tinham folhas caídas por cima, eram bem frescas, nítidas. Dessa vez o anoitecer na mata não iria nos obrigar a desistir de pegá-los. Dei o sinal e começamos a abrir o dispositivo de combate em cunha, pelo formato do terreno, com um rio à nossa direita. Os guias foram ficando para a retaguarda. Avançávamos lenta e cuidadosamente, os alas fora da trilha, sem fazer barulho. Logo em seguida começamos a escutar vozes. Depois, ouvimos assovios. Eles estariam esperando outros guerrilheiros? Procuravam contato? Não tínhamos tempo a perder. O encontro era iminente e, em determinado momento, subitamente um deles voltou pela trilha e eu fiquei quieto, escondido atrás de uma moita. O cara veio devagar, ficou na minha frente, do outro lado da moita, divisei sua camisa azul. Ele procurando escutar algo, cabeça erguida; eu agachado, quieto, respiração presa, dedo no gatilho, pude ver-lhe um buço ralo. Ou ele continuava pela trilha e daria de cara comigo depois da curva perto do riacho, ou voltaria. Ele voltou; dei uns 5 passos rápidos até a curva da trilha e dei-lhe voz de prisão: “Quieto e mãos na cabeça!”. Aí, ele se voltou assustado e, então, pude ver que era mulher. Estava a uns 15 metros à minha frente. Dei-lhe a ordem, voz de prisão, pela segunda vez; ela tentava desamarrar a aba do coldre, agachada meio de lado. Repeti mais duas vezes “Nãofaça isso!” ,“Não faça isso!”, à medida que ela tentava soltar o fecho do coldre para sacar a arma, enquanto agitava a mão esquerda para cima, tentando desviar minha atenção. Quem estava com ela, um pouco atrás, fugiu.
Após a terceira advertência, ela já com a arma na mão, vi que não havia outro jeito e atirei baixo acertando-lhe a perna. A guerrilheira, com o impacto, deu um salto e caiu gritando de dor. Fui rapidamente até ela e, enquanto procurava o revólver, ordenei-lhe: “Fica quieta, nós vamos te salvar!”. Ela chorava e gemia gritando, desesperada, segurando a perna ferida, sangrando muito, com o fêmur partido, visivelmente. Os companheiros dela tentam chegar mais perto e o tiroteio começa, violento. Eu ouvia os projéteis zunindo e o farfalhar na folhagem por cima de minha cabeça. Eles atiravam mais tentando retardar o nosso avanço enquanto recuavam rapidamente para evitar o encontro, procurando os abrigos em direção ao córrego, onde, na certa, nos aguardariam com grande vantagem. Além disso, na margem oposta a mata era bem mais fechada, com árvores bem mais altas.
Não achei o revólver dela em meio à densa folhagem, já bastante escuro na mata fechada. Eles continuavam fugindo e atirando. Atravessaram o córrego. Como anoitecia – a mata já ficando por demais escura – dei o sinal para a equipe parar e voltar; atravessar o córrego seria muita exposição ao inimigo. Difícil decisão, abandonar a perseguição depois de estabelecido o contato, sangue quente. Voltamos.
Aproximando-me da ”Sônia”, caída, já quieta, ela abriu fogo à queima-roupa quando me agachava para vê-la melhor. Tinha conseguido achar a arma. Caí desacordado. Curió, que vinha logo atrás de mim, foi atingido no braço. A equipe reagiu no reflexo, atirando no vulto, que era já bem difícil distinguir.
Agora, o relato de Cid.
“Você caiu e revidamos incontinenti, eu e Javali, atiramos nela por cima de onde você estava e avançamos cuidadosamente, sem nada combinar, para o lugar onde ela estava. Mas ela se arrastara para dentro de uma moita e a pouca claridade, quase escuridão, impedia que a enxergássemos; nos separamos de vista, Javali pela direita e eu pela esquerda varremos uma área de uns quinze metros, ela não poderia estar longe, ouvimos um gemido, ela se arrastando, e partimos em sua direção. Chegamos juntos próximo a ela, deitada de barriga para cima, já em estado deplorável, ensangüentada, arma na mão direita. Rapidamente pisei em seu braço, ao primeiro movimento, impedindo que ela levantasse a arma e perguntei rápido, enquanto ela procurava pegar a arma com a mão esquerda: “Qual o seu nome?”. Com ar de deboche e muito ódio, ela respondeu aos gritos – “Guerrilheira não tem nome”. Eu e João Pedro a metralhamos, antes que ela conseguisse pegar a arma.
Tínhamos sérios problemas pela frente, além dos tiros que eram dados em nossa direção pelos companheiros da ”Sônia”, embora do outro lado do riacho, mas estavam por perto, se retraíram com o tiroteio e atiravam em nossa direção. Tínhamos de verificar a gravidade de seu ferimento e prestar-lhe os primeiros socorros. Mas, após verificar que você estava recobrando os sentidos, respirando, abrindo os olhos e se mexendo, o grande problema era que os helicópteros não tinham permissão para voar a noite. Você sangrava, a bala que havia atingido o seu rosto tinha destruído a arcada dentária superior, mas não tinha saído, ou seja, estava alojada em algum lugar da cabeça, era tudo que podíamos deduzir de pronto. Era urgente conseguir socorro médico, você teria de ser tirado dali com toda a urgência. Os soldados, lembro o apelido de um deles, “Buceta”, apavorados, pois era seu primeiro combate, mas entendendo a necessidade de ser feito um transporte, cortaram um arvore fina mas suficientemente forte para sustentar uma rede, a sua própria, o colocamos na rede e regressamos a uma casa por onde havíamos passado ainda de dia. Resolvemos seguir para São José, onde uma Toyota do INCRA poderia pegá-lo e levá-lo para Bacaba, às margens da Transamazônica. Se conseguisse chegar lá seja qual fosse o tempo gasto no deslocamento, estaríamos aumentando as chances de evitar qualquer infecção. Não tínhamos analgésicos, nem como desinfetar, a água não era confiável, certamente pioraria o caso. Javali Solitário ficaria na casa juntamente com o mateiro e outros soldados, tentando contato via rádio com Bacaba, para marcar o resgate em São José. Eu e mais três soldados seguiríamos transportando-o até São José. Curió, já sem dor no braço baleado, seguiu junto, mas pouco depois resolveu voltar e ficar com o Javali. Não me passava pela cabeça a distância a ser percorrida. O tempo gasto num deslocamento, não serve de referência, porque tudo depende dos obstáculos a serem transpostos e as cautelas a serem observadas, dependendo da missão e das possibilidades de um confronto, segundo os critérios de credibilidade do informante. Nessa altura você estava perfeitamente lúcido, mas não podia falar compreensivelmente. Não havíamos caminhado 3 km e os soldados pediram para serem substituídos. Éramos quatro, eu e três soldados, ou seja, duas equipes. Fizemos a substituição. Nos primeiro passos, eu senti o drama, o soldado que fazia a dupla comigo era mais alto que eu, o peso tendia em maior quantidade para mim, os ombros doíam, mas saber que minha situação estava longe de se igualar a sua, agi como se ombro não fora meu, tínhamos de chegar ou chegar, não havia outra solução. Mais ou menos, o mesmo tempo decorrido da primeira rendição, chegamos a um riacho, falei para você que tínhamos de fazer um pequeno alto, para um descanso, a fim de poder prosseguir depois direto a São José, embora não tivesse noção de quanto faltava. Bebemos água, você não podia, fumei mais ou menos rápido um cigarro. Lembrei de seus avisos, “esse cigarro ainda vai lhe matar”. Os outros dois soldados assumiram. Pensava como eu agüentaria quando tivesse de fazer a rendição. A rede balançando, rolava o tronco com casca, esfolava o ombro, o meu já estava todo esfolado, os dos soldados não podiam estar diferente, mas ninguém reclamou, parei de pensar nisso e seguimos, ficamos ali no máximo seis ou sete minutos. Chegamos a São José, aguardamos não sei quanto tempo, mas chegaram duas Toyotas do acampamento de Bacaba, com médico e enfermeiros. A missão resgate se aproximava do fim. Os soldados os três olharam para mim, logo após colocá-lo na pick-up e o que tinha o apelido “da perseguida”, disse, “porra, Cid , achei que nunca chegaria”. Mas chegamos, respondi. Entreguei você em Bacaba, foi a última vez que o vi, antes do término da guerra. Tínhamos noticias quase todos os dias de que você estava bem, fora de perigo e se recuperando “.
Quando comecei a ser carregado por Cid e por Javali, um de cada lado, já estava começando a recobrar os sentidos, tossindo e cuspindo lama misturada com sangue e pedaços de dente. A hemorragia me incomodava, mas não sentia dor; a área atingida estava dormente e eu zonzo pelo impacto a queima roupa. Ainda não tinha idéia do que tinha acontecido, mas tinha consciência de que tinha sido atingido no rosto e na mão.
A sangueira era grande, mas foi estancando naturalmente. A hemorragia maior era para dentro da boca, uma vez que o véu palatino fora atravessado, tangenciado pelo projétil; eu engolia ou cuspia e a língua passando no ferimento interno do céu da boca produzia muita saliva.
No grupo de subversivos estava um rapaz, morador da região, que relatou depois, quando foi preso, que eles tinham preparado uma emboscada, uma vez que estando eu sendo carregado numa rede armada entre um pau nos ombros de dois soldados, que passaram os fuzis para os outros. Esses fuzis ficavam batendo um contra o outro a tiracolo, o que fazia um barulho nítido de metal contra metal, que era ouvido a grande distância no silêncio da madrugada na mata. Esta parada para descansar (e fumar), citada no relato do Cid, foi salvadora: reinando silêncio, subitamente na mata, eles interpretaram como se tivéssemos pressentido a emboscada e fugiram. Teria sido uma dura experiência, para nós, devido à total surpresa.
Este mesmo rapaz declarou, cerca de um ano depois, já solto, livre, que voltou ao local do incidente 4 meses depois e viu a ossada da ”Sônia” ainda lá, espalhada pelos bichos. E que avisou aos guerrilheiros, mas nada foi feito para resgatar a ossada, a menos de um quilômetro do local do grupamento A, onde, inclusive, ficava o “Velho Mário”.
Fui levado para a vila de São José, de lá para Marabá e, em seguida, para Belém, onde permaneci uns dez dias para me recuperar, principalmente, da perda de sangue e do inchaço do rosto.
Depois, fui evacuado para Brasília, operado no Hospital das Forças Armadas para extração do projétil. Operação delicada, pois o projétil estava alojado no pescoço, próximo à coluna e eu poderia ficar paraplégico. Após um mês, fui submetido a uma pequena cirurgia corretiva na feia cicatriz do rosto.
Este foi o meu último combate no Araguaia.
Em Belém, imobilizado numa cama, sem poder fazer nada, os pensamentos voavam na minha cabeça. Embora soubesse que o fanatismo “transforma homens em verdadeiros tigres”, nunca imaginei tal realidade na minha frente, ainda mais partindo de uma mulher. A ”Sônia” não podia ter resistido à voz de prisão. Não havia a menor dúvida de que eu estava com total domínio da situação, com a arma na mão apontada para ela. O que ela fez foi puro suicídio: ela queria morrer. Mas eu não queria matá-la. Ela seria, além de tudo, muito mais útil viva, claro. Não me sobrou alternativa, mas ainda assim atirei baixo, acertando-lhe a perna. Ela deu um grito e caiu feio, pelo impacto; pensei que estava vencida e minha intenção era continuar a perseguição aos outros do grupo que representavam real ameaça, pegá-los antes de escurecer. Ela não podia ter agido daquela maneira. Gemia alto e chorava em desespero.
Solicitaríamos o transporte por helicóptero no dia seguinte e ela seria levada e posta fora de perigo. Aí, então, iríamos para cima do restante do grupo, até pegá-los. O acampamento deles, soubemos depois, estava do outro lado do rio, bem próximo, menos de um quilômetro de distância. Se ela tivesse se rendido, talvez hoje estivesse viva e metida em alguma trapaça, em meio à quadrilha já tão bem identificada com a corrupção…
O Ângelo Arroyo, em seu relatório, dá conta de que o grupamento A correu um grande risco de ser destroçado.
Escreveu ele: “Se a patrulha não tivesse que prestar socorro a um militar ferido, teria havido o encontro, com resultado desfavorável aos guerrilheiros, com toda a certeza”.
Fui derrubado, mas a luta prosseguiu.
Eles espalharam que tinham matado um major e ferido um capitão. Justamente como a Sônia queria: ela dizia sempre que desejava matar gente graúda… soldado não interessava.
Pouco mais de dois meses depois, fui mandado de volta à área, já recuperado, aparentemente.
Esta minha volta para a área, creio, foi mais para mostrar que eu não tinha sido morto, como festejado e propalado pelos guerrilheiros. Tão especializados quanto eu, ou muito mais, estavam na área no mínimo 250 guerreiros de selva prontos e ávidos para entrar na mata e prender aqueles que não reagissem. E foi assim que aconteceu. Fiquei nesse período só com as “perfumarias” das operações, realizando pequenos vôos com o Paquera, lançando panfletos nas áreas mais prováveis de serem lidos. Se algum deles leu, se arrependeu de não ter aproveitado a ocasião.
No combate seguinte, o do dia 25/12/73, seriam destruídos simultaneamente o grupamento A e o comando militar da guerrilha.
Estava, assim, praticamente dominado o movimento. Osvaldão, comandante do grupamento C, seria, então, o próximo.
Em conseqüência do ferimento no rosto, até hoje tenho seqüelas: perdi vários dentes, com a arcada abalada sem possibilidade de correção, véu palatino rasgado; fiquei completamente surdo do ouvido direito e uma sinusite crônica surgiu no rastro dos resíduos de chumbo deixados pelo projétil no osso. O tiro na mão, por sorte, atravessou a palma, não tendo atingido nervo nem osso algum. Mas, graças a Deus, superei tudo. Só agora, na terceira idade, começo a sentir o peso de um 38 na cara…
Com Curió, o projétil atravessou o braço, sem maiores conseqüências.
Escreverei mais sobre o guerreiro Curió, embora não haja necessidade.
Mas, posso acrescentar agora outras suas facetas desconhecidas ainda. Depois da luta, ele permaneceu em Brasília e foi escalado “porta-voz da guerrilha”. Depois, aderiu a militares e políticos pouco confiáveis, juntou-se à UDR, foi eleito deputado. E ficou famoso.
Em seguida, foi para Serra Pelada, onde mais uma vez arriscou a vida em meio a um mundo um pouco menos áspero, com milhares de garimpeiros muito “delicados e compreensivos”. Firmou-se mais uma vez o Curió, impondo sua autoridade num meio hostil.
Afirmou Elio Gaspari que este incidente com a ”Sônia” foi o episódio mais notável da guerrilha, enaltecendo o fanatismo da guerrilheira, o que demonstra o pouco apreço que tem pela exatidão do que escreve.
Lúcia Maria de Sousa – a “Sônia” : os registros dão a ”Sônia” como negra; na verdade, ela era parda, feições características, com nariz meio achatado e lábios ligeiramente grossos. Cabelos cortados como homem. Estávamos separados por uma moita quando ela chegou perto e ficou escutando, com atenção, querendo identificar alguma mudança do ruído característico da mata; não deu para distinguir se era homem ou mulher. Já estava escurecendo. Deu para ver que estava com camisa azul e tinha um buço acentuado, como de rapaz novo. Devia ter seus 30 anos de idade. Aí, eu já poderia ter acionado a tecla do gatilho…
Os relatórios dão como sendo ela estudante de medicina e que abandonou tudo, para ingressar na militância do PC do B, sendo levada para o Araguaia, incorporando-se ao destacamento A do Paulo Rodrigues. Segundo Relatório do Ministério do Exército, Lúcia “foi morta no dia 24/10/73 em confronto com as Forças de Segurança ocorrido na selva entre Xambioá, GO e Marabá, PA”.
Pasmem, seu corpo permaneceu abandonado a menos de 1 km (um quilômetro) de distância do acampamento do grupamento A, onde ficava inclusive o comando militar da guerrilha, com o “Velho Mário” e seu grupo de segurança, sem que fosse recolhido pelos guerrilheiros, a despeito dos diversos avisos dos moradores. O “Velho Mário” limitou-se a lamentar a morte de ”Sônia”, registrando em seu Diário, pois como médica era de grande valia para seus pupilos, inclusive e principalmente para ele próprio. E só. Os guerrilheiros só valiam para ele vivos; até mesmo quando seu filho foi morto, ele não foi ao local do combate nem mandou alguém na esperança de encontrar os corpos dos mortos ou alguma lembrança. Pelo menos não consta de seu diário esta providência. Somente hoje atrás de indenização para a família e outros lucros maiores, querem mostrar interesse na procura dos restos mortais dos guerrilheiros. Agora, eles valem ouro…
Por que não recolheram os restos mortais de ”Sônia” logo após o incidente, quando na área ainda reinava relativa calmaria? Eles ainda não sabiam que a Ordem de Operações já tinha sido dada.
A família de ”Sônia”, que mora em São Gonçalo, RJ, recebeu indenização de cerca de cento e quarenta mil reais em 2006.
A família do Cabo Odílio Cruz Rosa, morto por Osvaldão, covardemente, aproveitando que ele tomava banho no rio Gameleira, até hoje nada recebeu.
”Sônia” tinha seu valor, reconheço, era estudante de nível superior, só que, enganada, enveredou pelo rumo errado, de arma na mão, lutando para implantar no Brasil um regime comunista. Mas sua irmã ganhou uma boa indenização.
O Cabo Rosa, de grande valor e de grande potencial, que pretendia fazer carreira no Exército, escolheu o caminho correto, o da legalidade. Perdeu a vida no cumprimento do dever. Seus familiares nada receberam, além da enorme dor da perda do ente querido altamente injustiçado.
“À Pátria tudo se deve dar e nada pedir, nem mesmo compreensão” – Siqueira Campos.
Temos a obrigação moral de colocá-lo no pedestal dos heróis tombados na luta contra o comunismo.
Capítulo 6 – COMBATE DECISIVO
“Você sabe de onde eu venho? Venho do morro, do Engenho, Das selvas, dos cafezais”.
Foi o denominado “Chafurdo de Natal”, o combate que marcou a derrocada definitiva da guerrilha. O Cid estava lá…
Sobre este combate, de 25/12/1973, escrevo segundo informações de participantes e pelo que li a respeito ao longo de todos esses anos. Embora existam várias versões, todas são semelhantes, diferindo apenas na hora do combate e no número dos mortos imediatos. Considerei esta versão a mais provável, ligando os fatos, juntando as partes.
Com a constante permanência das patrulhas vasculhando a mata, a partir do início de outubro, os militares já com o sangue quente por tantos feridos e baixas do nosso lado, a vida dos guerrilheiros remanescentes, escondidos em suas tocas, tornou-se difícil. Os procedimentos de combate da tropa foram revistos. Agora, não eram mais missões de busca de informes; eram equipes de combate. Os diversos apelos para que desistissem, não foram atendidos. Não podíamos continuar a agir correndo riscos desnecessários, como até então.
Desde o assalto ao quartel da PM, no início de outubro ao início de novembro de 1973, vários combates tinham ocorrido, com perdas importantes para a guerrilha.
Fechado o cerco, eles teriam que se mexer e, na mata, quem se mexe se revela, se demonstra. Eles perderam a grande vantagem do ver sem visto. Até os animais praticam instintivamente esta verdadeira lei de sobrevivência.
Em conseqüência das inúmeras baixas ocorridas nesse período, os guerrilheiros se deslocaram para se reunir em torno da base do grupamento A, onde se achava o chefe Mauricio Grabois. Enquanto isso, as bases dos grupamentos B e C foram completamente destruídas pelas equipes do sul da serra das Andorinhas.
Duas patrulhas do norte, comandadas pelo Tenente Sigmar Lacerda Ventura e Tenente Luiz Carlos Alieth, ambos falecidos, localizaram um grupo no alto de uma colina, em mata densa, e atacaram na manhã de 25 de dezembro de 1973. Eram 16 guerrilheiros, sendo que 9 foram mortos e 7 conseguiram fugir na confusão do tiroteio. Os mortos: Maurício Grabois (Velho Mário), Paulo Mendes Rodrigues ( Paulo, comandante do grupamento A), Paulo Roberto Pereira Marques (Amauri), José Humberto Bronca (Fogoió), Orlando Momento ( Landim), Gilberto Olímpio Maria (Pedro Gil), Guilherme Gomes Lund (Luiz), Marcos José de Lima (Ari Armeiro) e Luiz Vieira de Almeida (Luizinho). Minha única dúvida é que eu tinha sabido da morte do Amauri em junho de 1972, próximo a Santa Luzia, área do Osvaldão. O Luizinho faleceu no dia seguinte ao combate. Ângelo Arroyo conseguiu fugir.
Osvaldão foi um dos que escaparam por estar um pouco distante do local no momento do combate. Sua base da Gameleira já tinha sido destruída.
Agora, com a destruição da última base, a do grupamento A, ele ficou vagando na selva, sozinho, e não se sabe bem porquê não procurou reorganizar o que restou dos grupos.
Este combate do dia 25/12/74 foi, sem a menor sombra de dúvida, o ponto alto da luta antiguerrilheira no Araguaia, o combate decisivo; alguns o denominam “chafurdo de Natal”, o que determinou o fim da luta. Na mata, porém, a gente perde a noção do tempo, só interessando o cumprimento da missão, que só termina quando o combate apontar ou decidir o vencedor, ou os que saírem vivos. Com certeza, ninguém deveria estar sabendo que era Natal, pois estavam em guerra, em plena ação, o perigo espreitando a cada passo na mata, a adrenalina a mil.
Os bravos militares participantes desse combate notável devem escrever a respeito, uma vez que o que se sabe ainda é muito pouco, dado à importância da ação. Praticamente, depois de passado o tempo de tolerância para que se entregassem, passamos apenas um pouco mais de dois meses para acabar com a festa deles: de 13/outubro a 25/dezembro, exatos dois meses e 13 dias.
Relatório Arroyo: – “Quando já estavam a mais ou menos um quilômetro do acampamento, às 11 hrs e 25 da manhã, ouviram cerrado tiroteio. Encontraram-se logo depois com Áurea e Peri, que vinham apanhá-los para o acampamento. Os dois afirmaram que o tiroteio tinha sido no rumo do acampamento. Cinco minutos depois do tiroteio, dois helicópteros e um avião começaram a sobrevoar a área onde houvera o tiroteio, e continuaram durante todo o dia nessa operação. Dois helicópteros grandes fizeram duas viagens – da base do Mano Ferreira, a uns cinco ou seis quilômetros, até o local do tiroteio. Tinha-se a impressão de que ou estavam levando mais tropas ou retirando mortos e feridos do local. J. e seus companheiros (eram oito) afastaram-se do local mais ou menos um quilômetro. No dia seguinte, 26 (de dezembro), foram a uma referência para encontro, num local próximo. Aí encontraram os companheiros Osvaldo, Lia (Telma Regina Cordeiro Corrêa), Batista (Uirassú de Assis Batista) e Lauro. Osvaldo informou o seguinte: que o grosso da força havia acampado dia 24, mas percebeu que estava perto da estrada. Dia 25, pela manhã, afastaram-se para uns cem metros de onde se achavam, designando alguns companheiros para limpar (camuflar) o local em que estiveram. Os membros da CM (comissão militar) e sua guarda ficaram num ponto mais alto do terreno, e os demais ficaram na parte de baixo . Na hora do tiroteio havia 15 companheiros no acampamento: Mário (Maurício Grabois), Paulo, Pedro, Joca, Tuca, Dina (com febre), Luís (com febre), na parte alta; embaixo: Zeca, Lourival, Doca e Raul (estavam ralando coco babaçu para comer). Lia e Lauro faziam guarda. Osvaldo e Batista realizavam a camuflagem.”
Aqui, desejo deixar registrado mais um exemplo da tremenda injustiça do destino, ao mesmo tempo que rendo minhas homenagens aos bravos guerreiros Tenente Sigmar Lacerda Ventura e Tenente Luiz Carlos Alieth. Depois de todos os sacrifícios e esforços inauditos no treinamento e na luta real, ainda em serviço dedicado à Pátria, num exercício de salto de pára-quedas em Resende, RJ, acidente lamentável com a queda da aeronave com perda total das vidas a bordo.
Alieth e Lacerda, vocês dois e todos os elementos de suas equipes, tiveram a oportunidade de, num ato de inigualável lealdade, coragem, dedicação e amor à Pátria, desenvolver uma ação que poucos guerreiros conseguem alcançar pelas mãos do destino: vocês executaram o Combate Decisivo de toda a nossa luta contra os guerrilheiros do Araguaia. Onde vocês possam estar nessa imensidão imperscrutável de Deus, serão sempre lembrados pelos seus companheiros de profissão como Heróis maiores.
Capítulo 7 – MORTE DE OSVALDÃO
“Venho das praias sedosas, das montanhas alterosas,
Dos pampas, do seringal. Das margens crespas dos rios,
dos verdes mares bravios da minha terra natal”.
O esconderijo de Osvaldão ficava numa elevação às margens da nascente do rio Gameleira, afluente da margem esquerda do Araguaia, próximo à vila de Santa Isabel, cerca de trinta quilômetros, em mata fechada, verdadeira “toca de onça”, uma fortaleza no interior de um cipoal, na encosta norte da Serra das Andorinhas, de onde seria avistado qualquer aproximação por qualquer lado. Dois vigias em postos de observações (jiraus), plataformas toscas construídas em árvores, em pontos estratégicos e diferentes, enfiando as duas trilhas existentes, uma em cada margem. A única maneira de alcançá-lo de surpresa era marchar à noite até próximo ao esconderijo e, ao amanhecer, progredir pelo leito do rio, encachoeirado e que dava vau, água pela cintura no máximo, e eliminando os vigias de forma silenciosa, arma branca ou zurzindo.
Não muito próximo, ficava o acampamento e depósito do grupamento com cerca de vinte elementos, homens e mulheres, a maioria homens. A posse de Osvaldão, com criação pequena, galinhas e porcos, cercado de cágados (jabotis), roça de sobrevivência e pequeno pomar, ficava mais afastada, para o lado de Santa Isabel. Qualquer notícia da presença dos militares na área, em Xambioá ou Marabá, eles catavam o que podiam e se recolhiam à toca, sombra e água fresca até que os militares saíssem. O grupamento de Osvaldão era o B, o do meio, entre o A, próximo a Marabá, e o C, próximo a São Geraldo/Xambioá.
Um morador da vila de Santa Isabel caçando certo dia, ao longo do rio Gameleira, foi levado pelo cachorro latindo seguidamente, até lá, pelo leito do rio. Encontrou-se com o Osvaldão, a quem já conhecia há bastante tempo. Foi liberado sob condição de não falar a ninguém, caso contrário morreria. Mas, em seguida, no dia seguinte, foi a Xambioá e relatou o ocorrido ao General Bandeira. E a missão foi programada. Descreveu o que viu, inclusive que levantou a aba de uma grande capixama que cobria um estrado de paus com grande quantidade de armamento e munição. Este fato desmonta a mentira que os comunas inventaram que os guias eram moradores torturados, obrigados a colaborar. Os únicos mateiros que não se apresentaram voluntariamente foram impedidos pelas próprias mulheres, em São Domingos.
O ataque à base da Gameleira foi executado com esse morador de guia, seguindo pelo leito do rio Gameleira ainda no crepúsculo matutino. Este trecho tem que ser feito batendo a sulapa, mas de maneira diferente do normal, silenciosa e cautelosamente. Jacarés, capivaras, pacas, e cobras assustadas poderão chamar a atenção dos vigias.
Osvaldão e grande parte dos guerrilheiros tinham ido para o norte, chamados para uma reunião; os que ficaram pouco resistiram, fugiram, com algumas baixas. O esconderijo foi destruído e o armamento foi apreendido, bem como a posse de Osvaldão.
Os guerrilheiros que escaparam, reuniram-se em seguida e seguiram o restante do grupo, para a base do grupamento A. Nas proximidades da base de apoio, no dia 25/12/73, por volta do meio-dia, escutaram um cerrado tiroteio e se dispersaram. A guerrilha, ou o que chamavam de guerrilha, estava destruída.
No início de fevereiro de 1974, os militares estavam seguindo os rastros dos guerrilheiros e sabiam que Osvaldão estava por perto (o tamanho da “prancha 48 bico largo”, solado de pneu, o denunciava nos rastros deixados na trilha). O morador Arlindo “Piauí”, mateiro de uma patrulha, pressentiu sua presença, chamou pelo nome e o derrubou com um tiro de chumbeira. Estava, assim, morto o “valente guerrilheiro”, sem dar um tiro, tentando fugir, após abandonar os companheiros à própria sorte. Fugir sozinho seria bem mais fácil que levar aqueles escoteiros, deve ter pensado.
Contado por “Piauí”, daria até vontade de rir, se não fosse trágico. Ele pressentiu que atrás de uma moita tinha alguém; só podia ser ele, o negão. Chamou em voz alta: “Osvaldão!”. Ao afastar o capinzal para ver quem o chamava, Osvaldão levou chumbo quente e morreu instantaneamente, varado por munição chumbo 3T Velox.
Vi cena semelhante no cinema, quando o caubói (Garry Cooper, filme “O Sargento York”), num campeonato de caça, imita o canto do peru e consegue acertar-lhe a cabeça quando a ave se mostra para ver a outra que a estava chamando… Grande Osvaldão… Queria ser guerrilheiro, mas sua única façanha foi matar, à traição, pelas costas, o Cabo Rosa quando tomava banho nu no rio Gameleira. Cometeu muitos outros crimes covardes, registrados e enaltecidos em relatórios pelos seus companheiros fanáticos. Deixou pelo menos dois filhos em Xambioá. Chamado, via rádio, o helicóptero para transporte do corpo, não dava para baixar por causa das árvores altas da região. Desceram uma longa corda e o corpo foi mal amarrado, caindo de grande altura. Depois de acharem o cadáver muito estragado, foi novamente amarrado e levado pendurado. Hoje, os bandidos dizem que foi para mostrar para todos que Osvaldão já estava morto e acrescentam que lhe cortaram a cabeça fora. Por qualquer trocado, afirmarão coisa muito pior…
Os índios suruis andaram cortando cabeças de guerrilheiros. Consideraram ao pé da letra que estavam dando um prêmio de tantos cruzeiros por cabeça…
Capítulo 4 – COMBATE COM O GRUPOMILITAR
“A paz queremos com fervor. A guerra só nos causa dor.
Porém, se a Pátria amada. For um dia ultrajada
Lutaremos sem temor”.
Num de seus livros, Elio Gaspari escreveu que o caso ”Sônia” (a seguir) foi o episódio mais notável da guerrilha, distorcendo propositalmente os fatos e enaltecendo o fanatismo da terrorista ensandecida e espumando de raiva, ódio doentio.
Mais um erro grosseiro causado por muita má fé.
oi o mais inusitado, por se tratar de mulher e de fanatismo fora do comum, extremado. Mas o combate com o grupo militar da guerrilha foi muito mais importante, muito mais sangrento, tendo desmoralizado o movimento do PC do B: eles perderam em um único combate, quatro elementos dos mais importantes (um deles entrincheirou-se atrás de uma árvore e conseguiu fugir em desabalada carreira depois de cessado o tiroteio, pois estava sem arma na mão e ninguém atirou nele), todos com cursos na China e em Cuba. O que fugiu, soubemos depois, era o João Araguaia, desapareceu na mata. O “Velho Mário” revelou, na ocasião em que recebeu a notícia da morte dos guerrilheiros, que um deles, o Zé Carlos (“Zequinha”), era seu filho, André Grabois, fato que era desconhecido de todos.
O combate do dia 25 de dezembro de 1973, o chafurdo de Natal, também foi muito mais importante que um simples combate não terminado, em que uma guerrilheira fanática acerta dois militares.
Com o combate contra o grupo militar da guerrilha, os bandidos ficaram desmoralizados e, na realidade, foi o começo do fim, passando pelo chafurdo (inegavelmente o mais importante de toda a luta) até a morte de Osvaldão.
O grupo militar, comandado por André Grabois, filho de Maurício Grabois, era o mais selecionado, o melhor, nas palavras do próprio Velho Mário em seu diário. Por este motivo, fazem pouco alarde do ocorrido, dizendo que foram emboscados, que estavam famintos, embora saibam realmente o que aconteceu, uma vez que o que conseguiu escapar deve ter relatado o fato. Uma emboscada fica demonstrado impossível no caso, pois numa perseguição na mata não se sabe onde eles vão passar.
Tudo se originou no assalto ao quartel da PM de São Domingos, ao alvorecer de um determinado dia no final de setembro ou início de outubro de 1973, pegando a guarnição de surpresa.
A Operação Sucuri estava terminada e as ações na mata iam ser iniciadas no dia 3 de outubro. Aproveitando a “calmaria” na mata o grupo militar da guerrilha, comandado por André Grabois, o “Zequinha”, destruiu uma ponte na Transamazônica e ao alvorecer pegaram todos ainda dormindo no quartel. Incendiaram todas as instalações, casa principal, refeitório, almoxarifado, corpo da guarda, casa da estação de rádio, gerador, paiol, levando todo o armamento (fuzis, revólveres), toda a munição e todo o fardamento, todo o dinheiro e material individual, agredindo com coronhadas, torturando e humilhando os militares, inclusive deixando todos de cueca. Uma ação audaciosa e reveladora da grande confiança que possuíam até então. Para eles, reinava inteira calmaria na mata; para os militares o movimento era febril: ia ter início, finalmente, a ação contra os terroristas.
O Zé Carlos, ou Zequinha, ou André Grabois, deixou um recado com o Tenente comandante do destacamento: “Que ninguém ouse nos seguir, pois agora estamos bem armados e o pau vai quebrar…”. E quebrou mesmo, mas para o lado deles, principalmente. Deixou também um comunicado à população, assinado por “Zé Carlos – Comandante do Destacamento A”.
O assalto ao Quartel teve grande repercussão entre a população local, mas foi contraproducente para os bandidos porque os moradores temiam as conseqüências naturais que adviriam. Nas cidades adjacentes, também houve muita perplexidade, receios e histórias mal contadas.
A notícia chegou a Marabá imediatamente; era o que chamávamos “telégrafo cipó”, ninguém sabia como e quem a trouxe. Recebi ordem para ir até lá com minha equipe, “verificar” o que realmente houve e tomar as providências necessárias. Fomos de viatura até a ponte destruída (incendiada), atravessamos o rio à vau pois ainda era época seca, embora as chuvaradas repentinas já começassem. Chegamos a São Domingos por volta de meio-dia, sob forte calor. Pedi que os homens viessem falar comigo, para relatarem o que aconteceu, quantos eram no grupo de terroristas e quem o chefiava. Vieram uns vinte moradores. Informado de tudo, expliquei a gravidade da situação e ressaltei que não podíamos deixar de ir atrás do bando. Pedi dois mateiros voluntários para auxiliar seguir os bandidos na mata. As mulheres ficaram de longe, só escutando e observando, mas se aproximaram, vendo que a conversa tinha terminado. Depois de alguns minutos, eles conversando com as mulheres, o João Pedro me trás a decisão: ninguém se apresentou para ir, com medo das mulheres ou dos bandidos (não sei qual o maior).
Vi-me obrigado, então, a ameaçar levar todos. Não tinha alternativa, a não ser que “escalasse dois voluntários” pelas aparências, com risco de opção por meros agricultores de gerimum ou macaxeira. Um bom mateiro teria que se dispor a ir e, como eu não teria garantia de sua competência na mata, deveriam ir dois. A designação tinha de ser deles próprios, lógico.
Como é que eles se negavam, quando os maiores interessados eram eles próprios, que tiveram o posto policial atacado e destruído? Sem polícia para assegurar a ordem, a área seria de ninguém. Depois de muita conversa, apresentaram-se dois mateiros dispostos a irem conosco.
Quando nos embrenhamos na mata fechada já pude vislumbrar toda a dificuldade que seria aquela missão. Após duas horas de marcha, aproximadamente, paramos na beira de um riacho.
Meu problema era grande, pois viemos sem a equipe de apoio e só poderíamos agüentar na mata uns dez dias, no máximo, devido ao pouco sal disponível. Com a batida nítida na trilha, pois além de muito carregados eles iam quebrando muito graveto, completamente confiantes, relaxados, eu sabia que só iríamos voltar quando os encontrássemos, de qualquer maneira. Teríamos que caçar de esbarro para sobrevivência, pois não poderíamos perder tempo procurando caça. Numa segunda parada para descanso, a última do dia, na beira de uma nascente, chamei os guias e expus o problema, no que eles concordaram, informando que a região era de muita caça; marchando silenciosamente poderíamos abater muitas aves e pequenos animais com a 22.
Os bandidos, com a carga pesada que levavam, marchavam devagar, parando muito.
Vários dias seguindo-lhes as pegadas, a despeito das fortes pancadas de chuva que mascaravam as pegadas, obrigava-nos a diminuir a marcha, sabíamos que avançávamos seguramente a cada dia, o que mais ainda aumentava a disposição de encontrá-los, fossem quais fossem as dificuldades. No final de alguns dias, já estávamos com muita fome, pois a ração de combate estava no fim e como tínhamos trazido pouco sal, o churrasco de caça, geralmente mutum insosso ou jaboti completamente sem sal, não ficava apreciável, ou melhor, já estava ficando intragável, principalmente de manhã, como primeira refeição.
Foi quando no alvorecer de um certo dia, antes do café, escutamos três tiros fortes de fuzil, tão nosso familiar e a bulha feita por porcos atingidos, guinchando. Eram eles, a menos de 500 metros, na mata. O confronto só foi acontecer cerca das 15:00 horas. Nesse dia não comemos nada e a sede era grande, pois não atravessamos nenhum córrego. Mas, diante do vislumbre do inevitável, nos esquecemos de tudo.
Eles deram os três tiros às 06:00 horas, caçando porcos monteiros, fazendo uma grande algazarra. Enquanto progredíamos sobre eles, houve três mudanças de posição: a inicial dos tiros nos porcos, a de preparação da caça (esfola e limpeza, quando fizeram fogo para queimar os pêlos) e a que fizeram em seguida para feitura de dois caçuás para o transporte da carne, pois ficaram muito carregados. Inicialmente, partimos para o local dos tiros, claro. Eles mudaram de posição e pegaram outro rumo, sempre conversando em voz alta; mudamos o rumo também. Eles pararam e fizeram fogo. Recomeçaram a marcha e em seguida pararam por algum problema, sempre conversando alto. Aí nós demos a volta e os atacamos pela frente, na direção em que estavam marchando, pegando-os de surpresa.
Equipe em formação de combate em linha, eu sem poder mais rastejar devido à proximidade de um guerrilheiro, levantei-me e gritei a ordem de prisão, obtendo como resposta um tiro dado por um deles que estava de vigia mais atrás e que não tinha sido visto. O revide foi inevitável, imediato. Mero suicídio. O tiroteio foi intenso e prolongado; quem se mexia tomava bala.
Terminado o tiroteio, silêncio na mata, estavam mortos: “Zé Carlos” (André Grabois), “Alfredo” (Antonio Alfredo Lima), e “Zebão” (João Gualberto Calatroni), todos identificados pelo único sobrevivente, o “Nunes” (Divino Ferreira de Souza), que estava muito ferido, com um projétil que lhe atravessou o corpo transversalmente, entrando no quadril de um lado e saindo na axila do outro lado, quase arrancando-lhe o braço. Mas foi ele quem deu os nomes dos mortos e a importância do grupo, embora falando com muita dificuldade. À noite, mal podia falar. O que conseguiu fugir era o “João Araguaia” (Demerval da Silva Pereira).
Do nosso lado, um soldado com ferimento na perna, julgado a princípio que tinha sido atingida a femoral e outro soldado com distúrbio psicológico (vomitando seguidamente e aparvalhado, parecendo estar sonâmbulo).
Conforme combinado via rádio, os mortos e feridos e todo o material deveriam ser transportados para o sítio da Oneide e entregues ao pessoal do PIC (Pelotão de Investigações Criminais) para a devida identificação.
O local do combate não era identificado nas cartas e as árvores eram muito altas de modo que o helicóptero não podia baixar.
No dia seguinte, bem cedo, iniciamos a marcha. Foram 6 horas através mata, extremamente difícil, com os cadáveres, feridos e carga sendo transportados em muares que estavam abandonados pelos moradores, e que foram trazidos pelos guias. A munição de fuzil foi destruída, jogada num buraco na mata. Os cadáveres, expelindo sangue e soro, ao passarem na folhagem faziam o retorno dos galhos na nossa cara, de modo que chegamos no sítio da Oneide completamente impregnados, emporcalhados. Além disso, havia um ferido gravemente (o Nunes); o soldado ferido podia andar, mancando, apoiado numa muleta improvisada de pau com forquilha. Foi, realmente, uma dura missão. Começamos a marcha ao raiar do dia e chegamos no sítio da Oneide com os helicópteros já pousando, ao meio-dia, como fora combinado via rádio. Tinham que ser identificados todos eles, claro. O pessoal do PIC ficou com um helicóptero e voltamos no outro, levando o Nunes, para os primeiros socorros em Marabá. Devido à gravidade dos ferimentos, ninguém acreditava que ele se recuperasse. Dias depois, soube que ele morreu.
Dizem os comunas, que o mataram na Casa Azul. Quando Pedro Albuquerque tentou o suicídio na prisão em Fortaleza, se tivesse morrido, estariam dizendo a mesma coisa. Caso o Nunes não tivesse morrido, teria ficado aleijado, pois o projétil destruiu a articulação do braço com o ombro.
Dessa maneira, estava destruído o grupo militar da guerrilha, o mais importante deles.
Numa reportagem na imprensa, um mateiro afirmou que a tropa do Exército já chegava atirando.
Primeiro, os mateiros iam ficando para a retaguarda na iminência do confronto. Ficavam quietinhos lá atrás até o cessar fogo.
Segundo, como os bandidos estavam fardados, tendo o Zé Carlos o gorro de 2º Ten da PM do Pará na cabeça (caki com estrela vermelha), teria obrigatoriamente de ser dada a voz de prisão para certeza de quem se tratava, invariavelmente.
Terceiro, na área agiam vários grupos de combate, principalmente em reconhecimento, o que tornava imperiosa a identificação para não haver acidente entre tropas amigas. Jamais poderia haver precipitação no encontro na mata. E nunca houve, que eu saiba.
Se a intenção fosse realmente acabar com eles, de qualquer maneira, o João Araguaia não teria sido poupado; estava sem arma na mão e ninguém atirou nele.
O mais gritante de tudo, que anula a versão de já chegarmos atirando, é que seria muito mais fácil levar prisioneiros marchando algemados pela mata do que transportar cadáveres em lombo de muares, exudando continuamente na nossa cara, pois íamos tocando os muares.
Dificilmente o local dos combates, em mata fechada, permitia o pouso de helicóptero. Inclusive, eles continuariam carregando as próprias cargas que roubaram. As informações que poderiam fornecer também eram de suma importância e foram perdidas, uma vez que o sobrevivente, o “Nunes”, muito ferido, não estava em condições de falar na manhã seguinte. Ele apenas deu, logo cessado o tiroteio, o nome de cada um componente e da importância do grupo, ainda com sangue quente, logo terminado o combate. Sofreu muito durante a noite e no caminho tendo chegado muito mal no sítio da Oneide, onde foi medicado sumariamente.
Tanto no caso da descoberta do local da guerrilha, como em todos os demais, era dada a voz de prisão. Os três elementos avistados (dois homens sem camisa e uma velha) no final da trilha de Pará da Lama, e que escaparam fugindo para a mata, podiam ter sido alvejados facilmente, tal a proximidade a que chegamos, uns 80 metros. De FAL, era tiro e queda.
O mesmo poderia ter sido feito com o “Geraldo”, que inclusive tentou fugir e poderia ter sido atingido facilmente.
O Pedro Albuquerque está vivo, em Fortaleza, CE, turisticando constantemente ao Canadá (como é bom ser comunista…).
O caso da ”Sônia” (a seguir), demonstra de maneira insofismável este procedimento das patrulhas, uma vez que ela poderia ter sido alvejada mortalmente ao tentar puxar a arma, mas foi preferido deixá-la ferida, após 3 ordens seguidas de 3 advertências sucessivas.
No meu entender, esta era a hora do “Velho Mário” desencadear a retirada, a única ação lógica que lhe restava. Principalmente em respeito aos seus comandados. Depois, repetiu o erro quando a “Sônia” caiu. Aquela decantada “vitória” no caso ”Sônia”, na qual “vibrou” e elogiou o fanatismo da pobre e infeliz companheira, na realidade selou a sua derrota e morte; ele não teve a capacidade de reconhecer o grande erro de avaliação, isto é, cantou uma vitória totalmente impossível antes de tempo. Esqueceu uma regra básica: nunca entrar numa guerra sem um plano de retirada; jamais entrar numa guerra sem saber como sair dela.
O jornalista Luiz Maklouf Carvalho, durante entrevista comigo, mostrou uma reportagem publicada em um jornal antigo, em que um morador, conhecido como “Vanú” (Manoel Leal Lima), de São Domingos, Transamazônica, declarou que foi guia do Exército no combate em que morreu o “Zé Carlos” (André Grabois). Não o reconheci na foto nem lembrei dele como mateiro. Nas declarações de “Vanú”, dentre as feitas evidentemente com objetivo de agradar o interlocutor tendencioso, além de muita imaginação, ele acertou alguns detalhes que, julguei, ele tivesse ouvido de Luiz Garimpeiro e Antonio Pavão, seus vizinhos em São Domingos e que foram os mateiros que mais serviram à minha equipe. Mas, assim mesmo, resolvi consultar o Cid por e-mail. Eis a resposta:
“… Mas, vamos ao que interessa: no caso do “Vanú”, era baixinho, uns 35 a 40 anos, não sei bem, acho que na mata as pessoas aparentam maior idade. Mas lembro que atuou em uma de nossas últimas missões, me ficou na lembrança devido ao fato de que atuou muitos dias reclamando de um problema no joelho, e que o atrapalhava no andar. Não sei porque ele foi escolhido, estando naquela situação para andar. Quanto ao “Vanú” dizer que eu mandei enterrar corpos, é uma grande mentira, mesmo porque uma coisa que jamais passou pela minha cabeça foi a de me preocupar com os corpos do inimigo. Sempre achei que era problema deles, tanto que já escrevi diversas vezes sobre isso e declarei que se fosse para enterrar o inimigo o Exército teria levado um Pelotão de Sapa, o que não fez. Nossos mortos estão bem enterrados e lembrados com respeito e carinho, o deles era problema deles, se não os recuperaram, com certeza alguma onça o fez”.
Jamais eu levaria para a mata alguém estropiado, nem militar nem civil, mormente o mateiro, pois andávamos o dia inteiro, dia após dia, como cantiga de grilo… Ainda mais numa missão prolongada, em que teríamos de andar muitos dias na mata, e reconhecidamente perigosa pelo número de guerrilheiros que informaram compor o grupo, agora já bem armados de fuzil e com muita munição.
“Vanú” pode ter sido mateiro daquela missão, o que não foi confirmado pelo Cid, por sinal uma das mais difíceis missões dentre todas, mas, pelas mentiras que disse, perdeu a credibilidade. De tudo que declarou, só acertou Cid e Adulpro (que muito bem pode ser Asdrúbal); muito pouco proporcionalmente ao que errou. No meu entendimento, acho que ele deve ter ouvido as conversas dos dois guias, que, aliás, eram da mesma vila de São Domingos. Mentiu muito. Só poderei confirmar que um dos guias era o Vanu depois de conversar com ele. Fica tranqüilo, Vanu, que da próxima o Adulpro se lembrará de você.
Capítulo 11 – MEU GRUPO DE COMBATE
“… agarra-lhe pelo cabelo, dobra-lhe a cabeça, esgargalha-lhe o pescoço, põe a nu, exposta a garganta, o carrasco, de um só golpe, firme e certeiro, degola-o sem clemência…”
Poderia bem ser a realidade da luta no Araguaia, mas é apenas um trecho de uma dissertação sobre os combates da guerra de Canudos, que aconteceu a pouco mais de cem anos.
Meu grupo de combate era basicamente formada por dez combatentes de selva. Normalmente no núcleo-base o João Pedro e o Cid, um ou dois guias caboclos e uns cinco soldados de BIS (Batalhão de Infantaria de Selva), com curso de guerra na selva do CIGS. Foi o único que atuou do início ao final da guerrilha.
Os guias portavam armamento individual e ajudavam no transporte da munição de reserva; eu tinha total confiança neles e nunca fomos decepcionados.
O João Pedro, ou Jota Peter, como o chamávamos, já falecido, foi incorporado à minha equipe nos primeiros treinamentos, em 1968, em Brasília, e operou comigo desde a primeira missão. Ele era um militar que amava a selva, as caçadas, a atuação isolada de pequenos grupos de combate, não se intimidando com os pontos mais polêmicos. Conversava bem com o matuto, servindo muitas vezes de verdadeiro intérprete. Era inteiramente afeito à selva, combatente nato, atirador e caçador excepcional. De uma de suas narrações, surgiu o apelido de Javali Solitário, que pegou prontamente. O João Pedro tinha a impetuosidade de um javali e não era de muita conversa, como um verdadeiro solitário.
E juntei o João Pedro a um outro grande e valoroso combatente nato, o Cid, também desde a primeira missão. Um pelo outro, eu ficaria na dúvida qual o melhor; na realidade, eles se completavam.
João Pedro, o “Javali Solitário” ou “Jota Peter”, e o Cid tomaram parte em quase todas as missões que comandei, de dezembro de 1968 a outubro de 1973, com a última missão, de paz, em 1974, para “resgatar” a musa dos pioneiros da “zona” de Araguaína.
Eles continuaram atuando na luta depois que fui momentaneamente derrubado. Hoje, tenho a satisfação de trocar e-mails com a neta do Jota Peter, já terminando a Universidade, além de manter sempre ligação com o Cid.
Houve um outro guerreiro muito eficiente, o Nazareno, que se distinguiu nas ações, mas que foi designado para outro setor.
Cid, grande guerreiro, coragem, sangue frio; inteligente, leal e de grande presença de espírito – de personalidade irrequieta, sempre muito bem disposto, bem humorado, muito prático e objetivo, era também o incansável e exímio motorista da equipe pela Belém-Brasília e Transamazônica. Tornou-se muito bom atirador; divertia-se com os erros dos companheiros nos treinamentos no stand de tiro, independente de posto. Despertou o gosto para as ações difíceis, arriscadas e perigosas, já durante os percursos ao longo da Belém-Brasília. Sua característica principal era o dinamismo; sempre em atividade, observando tudo com clareza e sagacidade. Adaptou-se rapidamente aos rigores das missões, principalmente na selva. Sua única deficiência: era um fumante inveterado.
Certa vez, ao reunir a patrulha na orla da mata para dar início a uma missão que era prevista para ser prolongada, notei a mochila do Cid muito certinha, quadradinha, por baixo da rede e da capa; fiquei desconfiado. Aí tem coisa, pensei. Para não melindrá-lo, depois de feitas as recomendações e estudo da missão, mais ou menos de praxe, dei ordem para abertura das mochilas, inspeção antes da partida. Ele quis sair de forma, mas não deu; abertas as mochilas, a dele só tinha pacotes de cigarro Hollywood. “Como é que você vai enfrentar a selva só levando cigarro, cara?”. “Chefe, deixa comigo…”. Ele tinha dividido o material com outro elemento da equipe, sendo que o fornecimento de cigarro era por conta e responsabilidade dele. Carga inútil e perigosa na selva. Entretanto, foi esse seu vício que evitou a emboscada preparada pelo grupamento A, quando ele mandou parar para descansar (e fumar).
Não devo falar muito do Cid, ele é que tem de tomar a iniciativa. E quando puder, vai relatar muita coisa interessante, importante e eu o estarei aplaudindo, na certa.
Um dos nossos treinamentos mais intensivos era, naturalmente, o tiro. Atirávamos com todas as armas portáteis, desde o revólver 38 ao lança granada M-79 com granadas “ruturita”, alvo fixo e móvel, silhueta, etc.
Certa vez, fui providenciar mais munição e quando voltei ao stand, encontrei o Cid atirando de 38 em latinhas de guaraná, vazias, seguradas por outro elemento da equipe, em revezamento… quem errasse segurava pro outro…
O Cid, por suas grandes qualidades, será uma pessoa que sempre guardarei na lembrança; e, por suas ações, sempre terá minha eterna gratidão.
De acordo com Curió, foram 16 militares mortos na guerrilha.
Outros escritores fornecem números diferentes.
O Exército com toda a certeza possui a relação nominal exata, confiável, definitiva, claro.
Como Curió permaneceu até ao fim das operações e era elemento de Informações (Inteligência), creio que sua conta é um número razoável, aceitável. A conta do Hugo Studart, com oito, não sei de onde ele tirou, possivelmente do dossiê elaborado por militares que atuaram na luta. Pelos depoimentos de moradores, o número de militares mortos foi de pelo menos 15. Alguns moradores chegam a declarar que todo dia morria muito soldado…
Mas cabe ao Exército, sem dúvida, declarar este número, com a relação dos nomes. É uma questão de honra: demonstração de que não foram esquecidos os heróis que deram a própria vida em defesa da Pátria.
Todos os documentos referentes à guerrilha foram incinerados. É difícil de aceitar este fato, mas hoje estou convencido de que é verdade. Conversei com o Oficial, hoje General da Reserva, que recolheu tudo em todas as Regiões Militares e incinerou tais documentos, pessoalmente.
Em 1980, já na Reserva, fui convidado para participar de um trabalho de reconstituição da história da guerrilha por um companheiro que tinha feito parte da minha equipe em várias missões e que o conhecia apenas pelo codinome; sei que era Capitão de Cavalaria e usava um vasto bigode. Não pude participar dessa reconstituição por estar trabalhando em Manaus. Não existia Internet naquela época. Se estavam trabalhando em reconstituição dos fatos no CIE, é porque os documentos oficiais já não existiam. Creio que esse trabalho pode ter dado origem ao “Orvil”.
Na Intentona Comunista de 1935, foram 33 militares mortos e a relação nominal é lida todos os anos na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, e em todas as Guarnições Militares pelo Brasil a fora, em belas e emocionantes solenidades com formatura, banda militar e desfile da tropa em honra aos heróis e em continência a seus descendentes presentes no Palanque das autoridades.
Para a guerrilha do Araguaia, que o Comandante do EB publique a relação nominal completa, para ser lida da mesma forma, em solenidades a serem realizadas a cada 15 de março, data do Comunicado Oficial da vitória (15 de março de 1975), ao Congresso Nacional, feito pelo Presidente Ernesto Geisel. É uma de minhas esperanças comparecer à primeira cerimônia, pelo menos.
Capítulo 12 – MODUS OPERANDI DO MEU GRUPO DE COMBATE
“Mas, se ergues da justiça a clava forte, verás que um filho teu não foge à luta, nem teme, quem te adora, a própria morte”.
Guerreiro das Sombras Cavaleiro das sombras
Nervoso, penetro a gruta sombria, Afiada espada nas mãos, Sequioso de um sanguinário combate Entre a alvura e a escuridão.
Lentamente, caminho em direção. O funesto lugar de sonhos Arrepia-me a alma descontente, Calo a voz, suspiro, sigo em frente.
Erguida, a lâmina brilhante, Seu fio afiado desbrava a mata, Na surdina da gélida noite Murchas flores, secas folhas estalam.
Furtivamente, prossigo… Estalam sob meus pés as folhas Meu rosto banha-se de suor Temo morrer, será o pior.
Voraz, caminho apressado, Preparado para a figura do monstro, Enlouquecido, matar… Aperto o passo – descompassado, frenético, delirante
Defronte ao inimigo Sem dúvidas é o amargor. Uivo, berro, grito, … soluço e… choro. Abaixo a cabeça e, Deus! Eu coro.
(poesia de Alberto da Cruz)
Junto com meu grupo de combate, eu levava uma equipe de apoio, comandada por um Sargento de Intendência (batizâmo-lo de “Furriel”), e 6 soldados auxiliares (os “Xeleléus”), sendo dois caçadores (preparo do simples acampamento temporário, vigilância, preparo de refeições, apoio em geral, um deles sendo bom armeiro e outro enfermeiro – bastante esparadrapo, mais para calos, cortes, mordidas, escoriações em geral). O armeiro, para a limpeza e manutenção, enquanto dormíamos. Essa equipe de apoio transportava em sacos, mochilas e embornais, a maioria dos alimentos (farinha, sal, açúcar, rapadura, café, bolachas, doces e alimentos rápidos) e o produto da caça, sempre de grande peso, embora só aproveitássemos as melhores partes. Era essa equipe de apoio a responsável, inclusive, pela segurança do acampamento, além de transportar uma boa reserva de munição.
Dessa maneira, para nós, não havia limitação do tempo de duração da missão na selva: os indícios ditavam o tempo de permanência na mata, até o encontro, a prisão ou o combate. O tempo determinado pelos “burocratas” para a duração da missão eu raramente levava em consideração. Não era lógico, muito menos recomendável, chegar nas barbas do inimigo e voltar, por tempo previsto expirado. Jamais. A permanência na mata era um sufoco, um marchar constante, sempre com muita atenção, principalmente na expectativa do encontro. Todos viam o nosso estado físico na volta: cansados, magros, sujos, empolados de picadas de mosquito, pulgas, carrapatos, percevejos, formigas, maribondos, calos e esfolados os mais diversos, sem falar nos feridos, coisa rara, felizmente.
Muitas vezes minha equipe foi dada como perdida, devido à demora na mata, causando apreensão geral, principalmente em Brasília.
O rádio não podia ser ligado para falar com o Paquera, para não denunciar nossa posição. Este fato, embora tenha me proporcionado alguns aborrecimentos, não me incomodava; em missão, eu me esquecia desses problemas.
Operávamos como um só elemento; todos sabiam exatamente como proceder, o que deveriam fazer ao meu sinal de presença do inimigo, quais as formações de combate. Hoje, sabemos que estivemos diversas vezes sob a mira das armas deles, se não atiraram foi para sorte nossa, pois não os vimos. A Dina, no Caiano, teve o Cid sob a mira (aquele cidadão de chapéu preto que você mirou com sua 44… era o Cid – recado dele para a Dina) e ela declarou que não atirou porque estava com pouca munição; eles eram 4 e nós, 8. Achou melhor não arriscar. Ainda bem.
Atuávamos sempre a paisano, com o armamento orgânico em sacos de aniagem, mais escopeta 12 ou 16 com munição de chumbo 3T, duas carabinas 22 com muita munição short e silenciador Itajubá, faca, bússolas e hand-talkie, além do material pessoal, rede, plástico, sal e conservas de reserva (ração R2 de combate).
Não utilizávamos helicóptero para a ida para a mata; íamos a pé, em fila indiana, o guia na frente, eu logo atrás, dois soldados, JPeter, dois soldados, Cid e dois ou três soldados fechando a formação de marcha, tanto pela trilha como através mata. A equipe de apoio vinha atrás. Até o local presumido de início da área “quente”, sempre dois ou três dias de marcha firme a pé. Com isso, eles não ficavam sabendo de nossa aproximação, da nossa presença.
A área era fantástica, córregos de águas limpas, frutas silvestres ou dos pomares abandonados, muita caça, além dos animais abandonados (porcos, galinhas, patos, perus, etc.), mutuns e, por que não dizer, macacos…) e, em conseqüência, muita onça.
A proteção contra os mosquitos (malária e leishmânia) eram simples macetes de caçador: preparava numa garrafa de álcool com alguns pedaços de fumo-de-rolo; após um mês, ela estava em condições de ser usada, passada no corpo. Sempre levava na mochila uma pequena bisnaga plástica com essa solução. Além disso, um mês antes de entrar na mata, tomava injeções de vitamina B12, intramucular. Não tinha muriçoca que enfrentasse.
Muitas vezes caçamos de esbarro, porcos e mutuns, com 22. Numa parada, certa vez, uma onça entrou no cercado do chiqueiro sem a menor cerimônia e pegou na boca um porco por nós caçado, de surpresa e desapareceu com enorme facilidade na mata; ninguém iria atirar em onça de 22 e se atirássemos de fuzil denunciaríamos a nossa posição.
Uma vez acordei de noite com uma onça rondando aos nossos pés (acho que pela catinga ela não atacou… que bicho fedorento é esse aí, sô? E foi embora). Muita sorte ou proteção do além.
A marcha era feita principalmente através mata, evitando-se as picadas e sem cortar qualquer mato, evitando deixar vestígios. As picadas eram minuciosamente inspecionadas para vermos se havia pegadas. Não se usava terçado na marcha. As picadas serviam mais de referência aos guias, base de orientação. Todos usavam roupas comuns, evitando-se cores fortes ou brancas. Chapéu de palha ou de lona caki.
Ao chegar próximo ao local em que se deveria proceder a busca, era armado o acampamento próximo a algum córrego e iniciávamos a marcha com o GC em busca de indícios dos guerrilheiros. Não tinha como não achar. A equipe de apoio permanecia no local do acampamento e os caçadores se revezavam, trazendo carne fresca para o boião, principalmente paca. O sal era racionado; a farinha, alimentação básica do pessoal oriundo do norte, tinha que ser farta, o que consistia num respeitável peso a transportar. A grande vantagem é que já estava pronta para consumo: chamuscar a carne e comer com farinha, um grande pitéu na mata, verdadeiro regalo. ETC.ETC.ETC. – não leia este livro antes de ir dormr…