Autor(es):
Everardo Maciel O Estado de S. Paulo - 03/09/2012
Fiquei estarrecido quando tomei conhecimento, pela mídia, de que a mais alta autoridade da República, à época que eclodiu o denominado escândalo do mensalão, alegara tratar-se de um mero caixa 2.
Uma
autoridade fiscal chegaria ao limite da perplexidade ao ouvir de um
contribuinte que praticara crime de sonegação por omissão de receita, por
exemplo, a justificação de que fora tão somente um cândido exercício de caixa
2. Pois bem, esse mau contribuinte poderia acrescentar que se inspirara em
discurso de autoridade.
O
advogado, no exercício de uma função essencial ao Estado Democrático de
Direito, tem a obrigação de buscar a absolvição ou, ao menos, a redução das
penas que, em tese, seriam aplicáveis a seus clientes. O que espanta, todavia,
é ver políticos e advogados festejarem o crime do caixa 2, diante da
possibilidade de prescrição. Bradam solenemente: Foi apenas caixa 2! É a
banalização da indecência.
Crime
deve ser confessado de forma compungida e envergonhada, de cabeça baixa, com um
mínimo sinal de arrependimento. Somente criminosos doentios se vangloriam de
suas iniquidades.
Essas
condutas funcionam como uma espécie de cupins da frágil estrutura de valores da
sociedade brasileira. Somadas a outras, que de tão pequenas às vezes não são
percebidas, vão minando as convicções das pessoas e arruinando o processo
civilizatório.
A
alegação do caixa 2 é um episódio neste processo de aviltamento dos valores.
Não é, todavia, fato isolado. O ovo da serpente há muito se encontra instalado
no Estado brasileiro.
A
redemocratização no Brasil, infelizmente, revigorou a condenável prática do
fisiologismo. Não tendo sido decorrente de uma ruptura institucional, mas de um
processo conciliatório, a redemocratização trouxe à mesa do governo personagens
antes abrigados na oposição.
Os novos
protagonistas da cena política exigiram, legitimamente, que fossem
representados na administração, já sobrecarregada pelos oriundos da velha
ordem. A Nova República iniciou a temporada das "indicações". Foi a
festa do velho fisiologismo.
A arena
política passou a ser povoada por uma miríade de partidos e tendências, em que
prevaleceram interesses localizados, pretextando o que foi chamado de
presidencialismo de coalizão. O clássico fisiologismo, então, se sofisticou.
Se antes
as postulações dos partidos políticos se limitavam às "indicações",
num novo estágio elas se direcionaram para despudoradas demandas por
"diretoria que fura poço" e tesouraria de estatais.
Mais
recentemente, surgiu o que se chamou de aparelhamento, em que se vislumbrava um
comprometimento ideológico dos indicados. Não é nada disso, entretanto, ainda
que, em alguns momentos, se escutassem murmúrios de teses obscuras, cada vez
mais subjugadas pelo pragmatismo. Aparelhamento é apenas outra denominação do
fisiologismo, aplicável à ambição de grupelhos políticos não tradicionais.
Qualquer que seja o nome, o que fica evidente é o propósito de manter-se no
poder e dele se servir.
Chegou-se
à ousadia de cobrar fidelidade da toga ao poder. Muitos se espantam quando
magistrados decidem de forma diferente da expectativa dos que os nomearam.
Marianne, símbolo da República desde a Revolução Francesa, deve estar
ruborizada.
Essas
práticas pouco edificantes se combinam com barganhas e negócios que têm por
base as emendas parlamentares ao Orçamento. Serão elas, mantido o modelo
existente, uma fonte inesgotável de escândalos. Não raro, os acusadores de hoje
se convertem nos acusados de amanhã. A maldição está num sistema completamente
vulnerável à corrupção.
O
afrouxamento moral do Estado tem outras faces. Qual o respaldo moral para
cobrar as dívidas dos contribuintes, se o Estado não paga precatórios, atrasa
tanto quanto possível restituições e compensações de tributos e faz uso de todos
os recursos procrastinatórios para evitar a liquidação de sentenças em que foi
condenado? Essa assimetria de conduta, tão recorrente, é um desserviço à
República.
Não me
surpreendo, embora deplore, quando vejo cidadãos, publicamente, dizendo que não
pagam impostos porque os políticos são corruptos. É o império da torpeza
bilateral.
O que
impressiona, de mais a mais, é constatar que essa crise axiológica, que não é
recente, vem crescendo continuadamente, sem que nada interrompa sua execrável
trajetória.
Há uma
novidade, todavia. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos réus do
mensalão, independentemente das decisões que venham a ser tomadas, trouxe a
lume alguns conceitos alentadores, superando o ranço positivista que pretende a
supremacia do formalismo sobre os fatos. O que se colhe fora do juízo, ainda
que não sejam provas cabais, robustece as evidências extraídas no rito
judicial. Nenhuma destinação, por mais meritória que seja, sacraliza dinheiro
oriundo de peculato. Deve-se alegar caixa 2 em tom contrito e penitente. Como
contraponto, pessoas inocentes têm o direito de ser declaradas inocentes. É uma
réstia de esperança, até mesmo para os céticos, como eu.