Autor: Denis Lerrer Rosenfield
O Estado de S. Paulo - 27/08/2012 Denis Lerrer, Rosenfield, professor de Filosofia, na UFRGS
Certamente Delúbio Soares passará para a História
republicana como um cínico e um frasista, pois algumas de suas tiradas
tiveram grande repercussão. Assim, ao falar do mensalão, inventou a expressão
"recursos não contabilizados", não sem expor um sorriso irônico em
suas declarações. Nunca teve o menor pudor em utilizar a linguagem para
encobrir todos os seus malfeitos, contando com a impunidade, no futuro. Entre
os seus, foi até agraciado com o retorno ao partido, braço-mãe que o acolheu
depois de uma encenação de expulsão, apenas retórica, com vista a apaziguar a
opinião pública, aterrada, por assim dizer, com o abandono petista da ética
na política.
Entre outras considerações de Delúbio, uma
encontrou eco bastante grande à época, a de que o "mensalão" em
alguns anos viraria "piada de salão". Alguns anos já se passaram e
o Supremo Tribunal defronta-se agora com os fatos geradores da
"piada" e suas consequências. Seguro de suas posições e de seus
apoios, o ex-tesoureiro do PT pretendeu colocar-se como "profeta",
anunciando o futuro. Evidentemente, o personagem não tem a estatura dos
profetas bíblicos, mas cada sociedade tem os anunciadores do futuro que
merece. Mas será que sua profecia se vai realizar?
A "piada" estava alicerçada na alegação
- depois difundida por várias lideranças petistas - de que o mensalão não
existiu, como se nossa Suprema Corte estivesse agora às voltas com o
julgamento de algo inexistente. Como se poderia julgar o inexistente? Seria
tal pergunta risível se não estivesse assentada em toda uma campanha de
convencimento da opinião pública visando a tornar um fato de desvio de
recursos públicos e aparelhamento partidário do Estado, em particular de uma
de suas instituições, o Banco do Brasil, num não fato. Ou seja, o irreal
seria o fundamento de uma certa concepção partidária, baseada no
enfraquecimento sistemático das instituições republicanas e da moralidade
pública.
Os advogados de defesa, salvo exceções, adotaram
a atitude de marcianos chegando a um planeta desconhecido. Não sabiam de nada
do que tinha ocorrido, desconheciam os fatos. Suas defesas apresentaram um
conjunto de anjos que não tinham a menor ideia de nada, como se o julgamento
do Supremo fosse somente o resultado de um grande equívoco que esses doutos,
regiamente pagos, teriam a missão de esclarecer. Abraçaram a concepção da
piada, refinada, se é que se pode utilizar esse termo, na formulação de que o
mensalão não existiu.
Os réus estariam ali por mera casualidade, fruto
provavelmente de uma conjunção astral desfavorável, nada que o tempo e
"bons" argumentos não pudessem resolver. E "bons"
argumentos seriam precisamente os que demonstrariam a inexistência de crimes,
capazes de convencer os ministros de que o mensalão foi uma invenção
midiática ou uma tentativa de "golpe de Estado". Ou a maior parte
dos advogados vive em Marte ou compartilha o cinismo de Delúbio e seguidores.
A piada e a afirmação da inexistência do mensalão pertencem ao planeta deles
- esperamos que não ao nosso.
A denúncia do procurador-geral da República,
seguida e enriquecida pelo relator, Joaquim Barbosa, e também pelo revisor,
Ricardo Lewandowski, permite recolocar a "piada" e as declarações
da simples existência de "caixa 2" em seus devidos lugares. Tudo
indica, nestes primeiros dias de julgamento, que a "profecia"
delubiana não se vai realizar, mostrando um tribunal à altura da defesa das
instituições, pois, enfim, é disso mesmo que se trata. Com efeito, as
instituições não podem tornar-se uma piada, sob o risco de os risos serem
anunciadores de um porvir sombrio.
O relatório do ministro Joaquim Barbosa,
extremamente sério, bem argumentado e rico em informações, foi, em linguagem
não jurídica, a exposição do mapa do crime, como se falava antigamente em mapa
do tesouro, escondido por piratas que assaltavam e agiam à revelia da lei.
Seguiu a trilha desses "piratas modernos", que diferem dos antigos
por se apresentarem bem vestidos e usarem, alguns, óculos em vez dos
tapa-olhos de outrora. Aqueles tinham charme, enquanto os atuais são apenas
banais. A vantagem dos antigos, por assim dizer, consistia em mostrar o que
eram, que não tinham nada a ocultar, à diferença dos "modernos",
que pretendem passar por homens da sociedade, aceitos por suas práticas
"criminosas", aliás, "inexistentes".
Os fatos apresentados e demonstrados expõem todo
o caminho de desvio de recursos públicos, com dezenas de milhares de faturas
falsas, com responsáveis públicos desviando em proveito próprio e de suas
agremiações partidárias fundos que pertencem, em última instância, aos
contribuintes. Já aparece com nitidez, nesta fase primeira do julgamento, o
aparelhamento partidário do Estado no governo Lula, como se as instituições
fossem instrumentos carentes de validade e de legitimidade próprias. O risco
de tal conduta está em considerar as instituições como meros meios a serviço
de finalidades partidárias, que se erigem como primeiras.
O trabalho da Polícia Federal, do Ministério
Público e dos ministros do Supremo que até agora se manifestaram permite ver
em funcionamento instituições que existem independentemente de governos e
partidos. A trilha do tesouro roubado está sendo desvendada, com as primeiras
condenações de alguns envolvidos. O mapa foi apresentado. Resta, agora,
seguir as pegadas dos que cometeram os atos criminosos.
Nesta altura do julgamento, não será mais
possível voltar para a negação dos fatos, para a inexistência do crime. O
problema a ser ainda julgado reside nos pés das pegadas, nos agentes que
trilharam o caminho do crime. Isto é, cabe agora determinar as
responsabilidades individuais, que, elas também, devem ser provadas, sob
risco de atentarmos, por outro lado, contra os direitos individuais.
O mapa já foi apresentado, faltam ainda os
responsáveis.
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