Governo voltou atrás em decisão que cancelou, em 2003, a utilidade pública de entidade investigada pela PF. Instituição deve R$ 2 bi aos cofres da União
A Comunidade Evangélica Luterana São Paulo (Celsp), entidade mantenedora da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), conseguiu anular uma decisão do Ministério da Justiça (MJ) que cassou, ainda em julho de 2003, o seu Título de Utilidade Pública Federal (Tupf).
No dia 27 de maio deste ano, o MJ, por meio de um parecer da sua consultoria jurídica, fez com que o processo contra a Celsp instaurado pela coordenadoria de entidades sociais voltasse à estaca zero, alegando que a responsável por uma das maiores universidades privadas do país não teve direito de ampla defesa no processo administrativo. Foi determinada uma nova investigação cinco anos depois da decisão do próprio ministério.
Além de ser a quarta maior devedora de INSS do país, com R$ 475 milhões em dívidas – só perdendo para as empresas aéreas Varig, Vasp e Transbrasil – a entidade filantrópica gaúcha é investigada pela Polícia Federal (PF) e pela força-tarefa de procuradores do Ministério Público Federal (MPF) por suspeita de compra de pareceres para renovação do Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (Cebas) no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS). A venda desses pareceres foi alvo da Operação Fariseu (leia mais), deflagrada no dia 13 de março deste ano pelos federais.
Além de ignorar as investigações da PF e do MPF, a decisão do MJ contraria a posição da Justiça Federal. Em uma ação proposta em junho de 2006 pela mantenedora da Ulbra, ainda em tramitação na 9ª Vara da Justiça Federal do Distrito Federal, foi negado um pedido de antecipação de tutela que poderia garantir a anulação do ato do MJ.
Fora as dívidas com o INSS, a Procuradoria da Fazenda Nacional no Rio Grande do Sul informou ao Congresso em Foco que a Celsp está inscrita na dívida ativa da União com um débito de cerca de R$ 1,1 bilhão e que outras ações na Justiça devem elevar essa conta para R$ 2 bilhões.
Inegável relevância
A reversão da situação da entidade junto ao MJ teve participação do secretário nacional de Justiça, Romeu Tuma Júnior. Mesmo após a decisão da coordenação de entidades sociais que negou recurso à Celsp, Tuma Júnior encaminhou o processo à consultoria jurídica do ministério. O ato, segundo apurou o site, é de praxe nesse tipo de processo. Mas o secretário afirma, no parecer que anulou o ato de 2003, que a entidade tem "inegável relevância social".
Já o item 30 do mesmo parecer da consultoria jurídica aponta uma contradição. Diz que "os argumentos apresentados pela entidade foram apreciados, impossibilitando, assim, o exercício pleno da defesa ante à não apreciação dos argumentos expostos pela entidade litigante quando da prolação da decisão". O ministério admite que houve um erro de redação no parecer que revogou o ato de 2003. O certo seria dizer que os argumentos apresentados pela entidade “não foram apreciados”.
O procurador da República no Distrito Federal Pedro Antônio Machado, um dos integrantes da força-tarefa que investiga as filantrópicas, pediu cópia do parecer ao MJ e aguarda a chegada dos documentos para analisar que providências o MPF poderá tomar em relação a esse caso.
Negociação de parecer
Em escutas da Operação Fariseu, o advogado e representante da filantrópica no CNAS, Luiz Vicente Dutra, um dos seis presos durante a ação da PF, aparece negociando a venda de um parecer com um dos conselheiros do CNAS.
Entre as gravações, citadas inclusive numa ação popular que tramita na Justiça Federal em Canoas (RS), sede da entidade, pedindo o cancelamento do certificado de filantropia da Celps, estão diálogos entre o pró-reitor da Ulbra, Pedro Menegat, e o advogado Luiz Vicente Dutra.
No grampo de 31 de outubro de 2006, Menegat e Dutra combinam o pagamento de R$ 5 mil ou até R$ 8 mil ao conselheiro do CNAS Misael Barreto por um parecer em favor da Celsp.
"Vê aquele assunto que eu tinha lhe proposto do conselheiro Misael fazer o parecer do desmembramento, aquilo eu acho importante, porque ele é a figura lá que trata da parte jurídica, é o único conselheiro que lida com essas questões", afirma Dutra. "Me dá uma sugestão. Dentro do critério ali, de sempre", contesta Menegat. "Eu vou ver cinco mil, cinco ou oito mil", confirma o advogado.
O Título de Utilidade Pública Federal (Tupf ) da entidade, agora renovado pelo MJ, é um dos pré-requisitos para renovação ou concessão do Cebas pelo CNAS. E justamente porque a Comunidade Evangélica Luterana São Paulo estava com seu Tupf cassado, as suspeitas contra a Celsp aumentaram quando, em janeiro deste ano, os conselheiros do CNAS – por 12 votos a um e duas abstenções – renovaram o certificado da mantenedora da universidade luterana de Canoas.
Filantropia em xeque
Quatro notas técnicas enviadas por técnicos do INSS desde 2001 e do próprio CNAS, ainda antes dessa decisão, mostravam, entre outras coisas, que a Celsp remunerava seus diretores, não comprovava os 20% em gratuidade nas suas matrículas entre 1997 e 1999 e que o Ministério da Saúde informava que nenhum dos seus três hospitais tinha convênio pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
A remuneração de diretores e o não atendimento gratuito em 20% das vagas na área de educação e 60% por meio do SUS, na saúde, contrariam a legislação que regula os certificados de filantropia. Fraudes ou inclusão de serviços, que não são considerados filantropia para se atingir esses percentuais, são comuns entre as entidades investigadas e grampeadas pela Operação Fariseu e pela força-tarefa há pelo menos quatro anos.
O site também apurou que a mantenedora da Ulbra enviou recursos para o Uruguai a fim de viabilizar a criação de um colégio em Montevidéu, capital do país vizinho. Trata-se do Colégio San Pablo, que em outubro de 2007, recebeu o IV Encontro dos Diretores das Escolas da Ulbra, promovido pelo vice-reitor, Leandro Becker.
Esse foi um dos motivos que fez com que a Fazenda Nacional inscrevesse a Celps na dívida ativa da União, apenas com base de relatórios de fiscais do INNS e da Receita, antes mesmo da decisão do CNAS e de ações na Justiça. O envio de recursos para o exterior é proibido pela legislação no caso de entidades isentas de INSS e outros impostos federais como as filantrópicas.
Briga antiga
A briga da Ulbra pela manutenção do seu certificado e, principalmente, da isenção tributária começou em 1997. Naquele ano, a entidade mantenedora da universidade luterana pediu ao CNAS a renovação de outro certificado relativo ao triênio 1994-1996. Trata-se de documento anterior ao renovado pelos conselheiros em janeiro deste ano. No CNAS, a manutenção ou cancelamento do Cebas é feito a cada três anos, mas, como há acúmulo de processos sem julgamento, triênios antigos ficam aguardando decisão dos conselheiros.
Ainda em 1997, o CNAS aceitou o pedido, mas o INSS em Porto Alegre, com base nas irregularidades já apuradas por seus fiscais, recorreu ao Ministério da Previdência Social (MPS) no ano seguinte.
O recurso foi negado, em 1998, pelo então ministro da pasta, Waldeck Ornélas, que desconsiderou o argumento do INSS de que a entidade não aplicava a gratuidade, prevista na legislação, em favor de pessoas carentes.
O processo só foi analisado novamente pelo primeiro ministro da Previdência de Lula, Ricardo Berzoini. Só depois de seis anos, já na administração petista, o processo foi remetido para novo cálculo no setor contábil da consultoria jurídica do Ministério da Previdência. A análise mostrou "a gratuidade zero, em todos os três anos analisados".
Pedido de cancelamento
Diante desse relatório, o advogado da União no MPS, Idervânio da Silva Costa, sugeriu a anulação do parecer de 1998, feito pela equipe de Ornélas e a remessa de cópia integral ao MPF para apuração de responsabilidade.
Já em 2005, MPF ajuizou a Ação Civil Pública n° 2005.34.00.022659-3, pedindo o cancelamento do certificado da Celps. O processo está na fase de especificação de provas, mas, finalmente, em decisão de novembro de 2006, o então ministro da Previdência, Nelson Machado, anulou o certificado de filantropia de entidade luterana para os anos de 1994 e 1996.
Esse fato também chama a atenção dos investigadores, pois da mesma forma que a entidade não tinha o título de utilidade pública, cancelado ainda em janeiro pelo MJ – um dos pré-requisitos para ter a renovação do Cebas –, a anulação do certificado de filantropia do triênio anterior deveria ter sido considerado como concessão e não renovação. Isso porque o MPS tinha anulado a autorização dos anos anteriores ao triênio 1997-2000. Esse período é o foco da decisão polêmica de janeiro de 2008, sob suspeita do CNAS e que aparece mencionada nos grampos.
Ministério nega interferência
Procurada, a Celsp, mantenedora da Ulbra, não retornou os contatos feitos por telefone e e-mail, com os pedidos de esclarecimento feitos pela reportagem. O advogado Luiz Vicente Dutra também não retornou os recados deixados no seu celular e no telefone do seu escritório em Porto Alegre (RS).
Já o Ministério da Justiça enviou cópia do parecer de sua consultoria jurídica. Além disso, nas respostas às quatro questões formuladas pelo site (leia a íntegra), o ministério diz que não houve interferência política no caso, apesar das declarações do secretário Nacional de Justiça em relação à entidade filantrópica. Alega ainda que o assunto foi encaminhado à consultoria jurídica "em vista da relevância da questão".
"Na verdade, a manifestação no sentido de anular o processo foi medida imposta pelos parâmetros legais e constitucionais", diz o texto enviado pela assessoria de imprensa da pasta.
O Ministério da Justiça também informa que a decisão judicial que não atendeu ao pedido da Celsp para que seu título de utilidade pública fosse mantido tenha influência na revogação da cassação do título de utilidade pública. "Ademais, ao que parece, não houve determinação judicial para que este ministério se abstivesse de proceder à restituição do título à entidade, caso em que haveria a vinculação alegada", acrescenta.
Por fim, a assessoria do ministério confirma que houve erro no item 30 do parecer. "Realmente falta um ‘não’ na frente do ‘foram’, no item 30 do parecer. Trata-se de erro material que pode ser observado quando da análise conjunta dos argumentos tecidos no parecer".
Fonte: http://congressoemfoco.ig.com.br/Noticia.aspx?id=22728
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