Mesmo para os padrões éticos do lulismo - que submetem a moralidade política e administrativa às conveniências da patota no poder, sendo imoral o que as contrarie -, são estarrecedoras as revelações sobre o engajamento espúrio do governo para facilitar a venda da Varig, com a participação direta - e decisiva - do advogado Roberto Teixeira, velho amigo, benfeitor e compadre do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na história escabrosa relatada com exclusividade a este jornal pela ex-diretora da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) Denise Abreu, a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, e a secretária-executiva da Pasta, Erenice Guerra, aparecem aplastando sumariamente as tentativas do órgão regulador de verificar, como lhe competia, a legalidade do negócio.
De seu lado, um dos sócios brasileiros da interessada na compra da Varig, a VarigLog, Marco Antônio Audi, informou ter pago ao compadre de Lula US$ 5 milhões para ''trazer resultados''. Disse, textualmente: ''Não sei o que o Roberto Teixeira negociou. Só sei que investi nele, ele tinha que trazer resultados e trouxe. Sua influência foi 100% decisiva.''
O caso remonta a 2006, quando a endividada Varig foi adquirida por US$ 24 milhões pela sua antiga transportadora de cargas, a VarigLog. (Em março do ano seguinte, esta revenderia a empresa para a Gol por US$ 320 milhões.) Para a Anac, o problema a ser esclarecido antes da transação dizia respeito aos controladores da VarigLog, que à época pertencia a um fundo americano de investimentos, Matlin Patterson, em sociedade com três empresários brasileiros, Marcos Haftel, Luiz Gallo e o citado Audi. Como a lei proíbe que estrangeiros detenham mais de 20% do capital de uma companhia aérea nacional, a diretora Denise Abreu expediu ofício exigindo a entrega de documentos que demonstrassem a origem dos recursos dos sócios brasileiros, incluindo as suas declarações de renda. Foi quando as conexões de Roberto Teixeira começaram a se tornar ''decisivas''. Primeiro, por intermédio de sua filha, Valeska, que procurou Denise para protestar contra a decisão - invocando a sua amizade próxima com o antecessor de Dilma, José Dirceu, e a condição de afilhada do presidente da República.
Depois, a própria Dilma entrou em cena. Nas palavras de Denise aos repórteres Mariana Barbosa e Ricardo Grinbaum: ''A ministra se insurgiu contra as exigências, dizendo que isso não era da alçada de uma agência reguladora, mas do Banco Central e da Receita. Falou ainda que era muito difícil fazer qualquer tipo de análise tentando estudar o Imposto de Renda dos sócios porque era muito comum as pessoas no Brasil sonegarem imposto.'' A rigor, a Casa Civil nem poderia se intrometer, dada a autonomia assegurada em lei às agências reguladoras. Por fim, em 23 de junho de 2006, o presidente da Anac, Milton Zuanazzi, comunicou aos diretores do órgão que o caso teria de ser votado naquele mesmo dia. ''A senhora Valeska e o Cristiano Martins (seu marido e sócio) estavam na ante-sala, aguardando a decisão'', recorda Denise. Lembra também de uma reunião com o casal, encerrada pela filha de Roberto Teixeira nos seguintes termos: ''Agora temos de ir embora porque o papai já está no gabinete do presidente.''
Eis o flagrante em cores da intimidade do governo Lula. Exibe a desfaçatez com que o Palácio do Planalto se acumplicia com as jogadas de um traficante de influência do porte do ''papai''- o advogado em cujo apartamento Lula morava de favor em São Bernardo do Campo e que já no início dos anos 1990 era favorecido por atos escusos da prefeitura petista de São José dos Campos, no mínimo com a conivência do primeiro-companheiro do partido. Não fossem esses vínculos, ninguém pagaria a Teixeira US$ 5 milhões para garantir - até mesmo despachando no gabinete presidencial - que nada obstasse, do lado do poder público, a consumação de um negócio suspeito, simplesmente impossível em outras circunstâncias. Mas esse escândalo não apenas evidencia o modus operandi da cúpula do governo quando se trata de usar o Estado para fazer favores pessoais a quem está credenciado a recebê-los. É o primeiro escândalo de que se tem notícia nesses anos da ética do vale-tudo que alcança direta e inequivocamente o titular da República. Desta vez, Lula não pode alegar que não sabia ou que foi traído.
Fonte O ESTADÃO 05062008